terça-feira, 29 de junho de 2021

Por que não estou preocupado com o consumo de café

por Gideon Meyerowitz-Katz 
Fonte: blog do Gideon 
traduzido por Felipe Nogueira

Como tenho um blog de ciência e saúde, uma das perguntas mais comuns que as pessoas me fazem é sobre café. As pessoas se preocupam frequentemente se consomem café demais, porque aparentemente café faz mal para saúde, ou se consomem menos que deveriam, porque é milagroso. Há uma literatura vasta sobre os impactos do café, cafeína e bebidas relacionadas na saúde. Apesar de ser difícil resumir tudo em um artigo, a pesquisa é relativamente consistente  o café não é nem uma cura milagrosa para seus problemas, nem um veneno que está te matando lentamente. 

Aqui está a minha interpretação da evidência e por que estou tranquilo com o meu hábito de consumir 2-5 xícaras de café por dia. 

Espresso preparado pelo tradutor deste texto


Os riscos do café

A primeira parte da equação é o risco com o hábito de beber café. Vale a pena dizer que este artigo parte da ideia de um consumo médio de café pelos humanos, porque a cafeína pode se fatal em doses altas. Se você estiver bebendo menos de 10 xícaras de espresso por dia, este artigo é para você. Porém, se você estiver próximo de uma dose tóxica de cafeína com o equivalente a 40-50 xícaras em menos de 24 horas, você deveria considerar diminuir a quantidade*. 

Deixando de lado o risco de consumir uma piscina de café mensalmente, os problemas são extremamente pequenos. Há uma grande quantidade de pesquisa observacional olhando os potenciais danosos de café na saúde, já que é uma exposição bem comum. De forma geral, os riscos ou não são observados ou são relativamente mínimos. 

Por exemplo, há evidências de que um alto consumo de café (mais de 4 xícaras por dia) está associado a um maior risco de câncer de bexiga. Similarmente, mais que 4 xícaras de café por dia parece estar correlacionado, em algumas pesquisas observacionais, com maiores chances de doença cardíaca, o que pode parecer preocupante em um primeiro momento. 

Entretanto, tais estudos normalmente são bem inconclusivos. Até quando há um risco maior de câncer, ele parece existir apenas em alguns subgrupos da população (nesse caso, fumantes), além de poder não ser uma relação causal. Enquanto há um risco aumentado de doença cardíaca associado com beber MUITO café, 1-3 xícaras por dia não mostra um risco similar e pesquisas longitudinais não apoiam esse achado em muitos casos. Além disso, quando olhamos o risco de café e TODOS os cânceres, parece não existir nenhuma associação.

Quando temos evidência de estudos randomizados, a figura fica ainda mais nebulosa. Há alguns dados mostrando que café impacta seus lipídios séricos (colesterol, triglicerídeos, etc), mas é um aumento modesto e não consistente entre todos os estudos. Outras pesquisas sobre marcadores de doença cardíaca e controle da glicose encontraram resultados inconclusivos e em alguns casos até benefício (a curto prazo)

Até as recomendações mais comuns, como não beber cafeína durante a gravidez, é difícil de ser assertivo. Sim, há uma associação entre café e piores desfechos na gravidez, mas também é inconsistente: na sua maioria, foram vistos apenas com altas quantidades ingeridas de café. E pesquisas intervencionais  onde as mulheres recebem diferentes quantidades de café para beber durante a gravidez  não mostraram esses impactos. Todo mundo sabe que beber café é ruim para o sono, mas quando olhamos a pesquisa da relação entre cafeína/café e sono ruim é difícil chegarmos a uma conclusão, porque há o risco óbvio de causalidade reversa (pessoas que dormem mal bebem mais café para ficarem acordadas). 

Olhando tudo, parece que café tem um risco pequeno. Sim, há algumas questões com altos níveis de consumo, mas até esses são inconsistentes e não necessariamente causais. 

E o outro lado da moeda?   

Os benefícios do café

Este é um artigo particularmente divertido, porque o contraponto às fracas evidências dos danos relacionados ao café é um outro bando de evidências fracas dos benefícios dessa nossa bebida deliciosa. 

Por exemplo, beber café está associado com um risco inverso de câncer orofaríngeo. Café também está relacionado com um menor risco de cânceres de intestino, de fígado, de ovário, de tireoide e de pele.  Boas notícias, certo? 

Entretanto, lembre o que eu disse anteriormente  café não está ligado com um risco reduzido de qualquer câncer, apenas cânceres específicos em certos estudos e, até mesmo para esses cânceres, os resultados são bem inconsistentes em populações diferentes. Além disso, esses estudos sofrem dos mesmas limitações daqueles estudos que observam os danos  é muito difícil separar os impactos causais de estudos que essencialmente consistem em perguntar para os participantes a quantidade de café que eles bebem e, então, verificar se eles desenvolveram câncer alguns anos depois. 

Um bom exemplo disso é diabetes. O café está fortemente associado com um risco reduzido de diabetes em grandes estudos observacionais. É um resultado que foi replicado algumas vezes, com muitos mecanismos causais que podem explicá-lo. 

No entanto, quando você conduz um ensaio clínico randomizado dando café para um grupo e placebo para outro grupo, os benefícios na redução de glicose no sangue são bem pequenos e de curta duração.  Esses ensaios clínicos são bem pequenos, então é difícil termos certeza, mas é um argumento interessante de que as evidências dos ensaios clínicos não apoiam os estudos observacionais. 

Outra coisa que sempre me chama a atenção quando eu vejo esse tipo de evidência sendo discutida na mídia é que a pesquisa geralmente identifica um benefício bem pequeno oriundo de, se formos honestos, uma grande intervenção. Beber uma xícara a mais de café é pedir muito para a maioria das pessoas. Embora está correlacionado com um risco reduzido de diabetes, a redução é pequena: um risco 0,01% menor de ser diagnosticado com diabetes a cada ano. Em outras palavras, para cada 100 mil pessoas que bebem 1 xícara de café por dia, esperamos 400 novos diagnósticos de diabetes a cada ano. Se todas elas beberem uma xícara extra de café diariamente, reduziríamos para 390 os novos casos de diabetes ao ano.   

Não é um benefício tão grande quanto as manchetes sugerem. 

Escolhas

Há evidências de que o café é prejudicial, mas não são muito fortes e podem ser causadas por fatores de confusão residuais ou por problemas relacionados com o desenho dos estudos. Há evidências  de que o café é benéfico, mas não são muito fortes e podem ser causadas por fatores de confusão residuais ou por problemas relacionados com o desenho dos estudos.

Minha resposta para isso? Beba café se você quiser, não beba se não quiser. 

Claro, essa não é uma recomendação para todos. Há razões para acreditarmos que café pode ser danoso para pessoas com certas condições de saúde e para crianças. Mesmo os danos sendo pequenos, é preferível pecarmos pelo excesso de cautela. Gravidez é outra área que mesmos os riscos não sendo muito grandes, a maioria das recomendações pecam pela cautela. Até mesmo quando o risco pode não ser causal, a recomendação geral é que limitar o consumo de café até 1 xícara por dia

Se o seu médico falar para você beber menos café, a resposta óbvia é seguir a recomendação. Mas para as pessoas em geral que apenas gostam de uma ou cinco xícaras de café por dia? A evidência mostra que os benefícios e riscos provavelmente são pequenos. 

Beba café se você gosta. É isso o que eu vou fazer!

* Para os interessados, uma dose tóxica de cafeína para um adulto é por volta de 3g. Essa dose pode não ser letal, mas você se sentirá bem mal e provavelmente precisará ir para o hospital. Como o café é preparado de diferentes formas, a quantidade de cafeína por litro varia muito, mas cada shot de espresso tem por volta de 50-150 mg de cafeína. Dependendo de como você prepara o café, você pode alcançar o nível tóxico de cafeína bebendo entre 20 e 60 xícaras de café de uma vez. 

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Gideon Meyerowitz-Katz é um epidemiologista, escritor de ciência e aluno de doutorado na Universidade de Wollongong. Ele trabalha em Sydney com doenças crônicas, focando nos determinantes sociais que impactam a saúde. Além de escrever sobre saúde/ciência no seu blog, ele escreve regularmente para o jornal The Guardian e Observer. 

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quinta-feira, 27 de maio de 2021

“Nosso” livro sobre Medicina Baseada em Evidências

por Felipe Nogueira, Josikwylkson Costa e Bruno Robalinho


Gostaríamos de divulgar o pré-lançamento de um livro sobre medicina baseada em evidências que tivemos a honra de participar. 

O livro chama-se Manual de Medicina Baseada em Evidências. O principal autor/editor-chefe é o cardiologista e eletrofisiologista José Alencar e foi editado pela Sanar.



Nós e outros autores excelentes contribuímos na autoria de diferentes capítulos. O livro tem uma abordagem interessante, onde praticamente cada capítulo foi escrito por autores diferentes.

O livro também contou com a Natalia Pasternak, doutora em microbiologia, presidente do Instituto Questão de Ciência e grande divulgadora científica, na autoria do Prefácio.

Confira o sumário do livro:

  • Seção 1 – Fundamentos:
    • Por que precisamos de evidências? Onde encontrá-las? Quando não precisamos delas?
    • Medicina enviesada por evidências
    • A pirâmide fluida da Medicina Baseada em Evidências e o caminho de uma hipótese até a sua confirmação
    • Vieses em estudos científicos
    • A análise bayesiana dos estudos científicos
    • Estatística para quem não gosta de matemática
    • Como interpretar artigos sobre terapias?
    • Como interpretar um teste diagnóstico?

  • Seção 2 – Especialidades em evidência:
    • Cardiologia baseada em evidências
    • Endocrinologia enviesada por evidências
    • Oncologia baseada em evidências
    • Rastreamento de câncer baseado em baseado em evidências
    • Cirurgia baseada em evidências
    • Dermatologia baseada em evidências
    • Ortopedia baseada em evidências
    • Jornalismo de saúde baseado em evidências




O livro está disponível no site da editora Sanar.

Felipe Nogueira é Doutor em Ciências Médicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre e Bacharel em Informática pela PUC-Rio. Divulgador de ciência com contribuições nas revistas Skeptical Inquirer, Skeptic, e Revista Questão de Ciência.

Josikwylkson Costa é estudante de medicina no Centro Universitário UniFacisa (Campina Grande – PB). CPO da EBM Academy. Integrante e colaborador do grupo Stars, filiado ao Choosing Wisely Brasil.

Bruno Robalinho é cardiologista pelo Hospital Agamenon Magalhães (HAM/SUS-PE). Cardiologista intervencionista pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Doutorando em cardiologia pelo InCor/FMUSP/UFPB

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Mitos nas campanhas de prevenção de câncer

por Felipe Nogueira e Arn Migowski

publicado na Revista Questão de Ciência (Novembro de 2019)

Os meses de outubro e novembro são conhecidos pelas campanhas de conscientização do câncer de mama e próstata. O público escuta anualmente que, mesmo aqueles sem sinais da doença, devem realizar exames de check-up para a prevenção desses cânceres, como mamografia para o câncer de mama e PSA para o câncer próstata.  

Isso é chamado de rastreamento: a busca por uma doença através de exames em pessoas sem sintomas da doença que está sendo rastreada. O problema é que as campanhas, na realidade, desinformam o público sobre o real efeito do rastreamento. Como veremos, não apenas faltam informações sobre possíveis danos do rastreamento, como muitas vezes informações enganadoras são utilizadas.  Para piorar, estudos mostram que médicos – aqueles que deveriam ajudar as pessoas a tomar decisões sobre saúde – não estão bem informados sobre o rastreamento. 

Um dos equívocos das campanhas é começa pela a utilização do termo prevenção. Prevenir um câncer significa reduzir as chances de desenvolver essa doença. Infelizmente, esses exames de rastreamento não diminuem as chances de uma pessoa desenvolver câncer de mama ou próstata. Tal equívoco é importante, porque confunde o público: em uma pesquisa americana, 68% das mulheres responderam erroneamente que mamografia previne o câncer de mama [1]. Pior ainda, em uma pesquisa realizada com estudantes e profissionais de saúde em congressos no Brasil, 37% responderam equivocadamente que a mamografia reduz a incidência do câncer de mama [2]. 

Outra informação relevante ausente nas mensagens é que o rastreamento desses cânceres causa danos. Uma vez que estamos lidando com pessoas sem sinais e sintomas da doença, é na realidade mais fácil causar um dano, piorando a saúde dessa pessoa, do que melhorar alguém que já está saudável. 

O dano mais comum do rastreamento é o resultado falso-positivo, levando a uma ansiedade das pessoas examinadas. Por exemplo, aproximadamente 50% das mulheres americanas sem sintomas examinadas com mamografia anualmente por 10 anos receberão pelo menos um resultado falso-positivo [3]. Esses resultados muito comumente provocam ansiedade e levam a realização de outros exames. 

Mas esse não é o dano mais sério. A prática de exames de rastreamento para os cânceres de mama e de próstata em vez de reduzir (prevenir), na realidade, aumenta o número de diagnósticos de cânceres de mama e próstata. Esse excesso de diagnóstico é chamado de sobrediagnóstico - a detecção de um câncer que não é fatal e não causaria sintomas. 

Sobrediagnóstico não é um resultado falso-positivo. Um resultado falso-positivo ocorre quando um exame sugere a presença da doença, mas a suspeita não é confirmada em exames subsequentes. No caso do sobrediagnóstico, a lesão preenche os critérios patológicos do câncer. Ele só não causaria nenhum problema e, se não fosse pelo rastreamento, esse câncer não seria descoberto [4].  O dilema do rastreamento do câncer é que, no momento da detecção, não é possível prever quais casos vão evoluir ou não. Com isso, a maioria é tratada. Isso implica que, nos rastreamentos dos cânceres de mama e próstata, várias pessoas estão sendo tratadas agressivamente (com cirurgia, radioterapia, quimioterapia e terapia hormonal ou uma combinação desses tratamentos) para cânceres que nem deveriam ter sido detectados.  

Hoje sabemos que o câncer é uma doença de comportamento heterogêneo, isso é com diferentes velocidades de crescimento [4]. O rastreamento tende a detectar os casos de crescimento bem lento. Ou também aqueles que não evoluiriam ou que regrediriam. Já os casos mais agressivos, os que são mais letais, crescem tão rápido que o rastreamento não é muito útil, já que geralmente causam sintomas no intervalo entre exames. A solução não é fazer mais exames ou fazer um exame de forma mais frequente, já que isso levará a mais sobrediagnósticos, sobretratamento e resultados falso-positivos. 

Apesar do sobrediagnóstico e sobretratamento não serem mencionado nas campanhas, muitas vezes seus efeitos são enaltecidos como benefício. É frequente ouvirmos que o câncer de mama tem 95% de chances de cura se diagnosticado nas fases iniciais.  Esse número é a sobrevida em 5 anos – o percentual de pacientes vivos 5 anos após o diagnóstico –  uma medida bastante utilizada para medir o prognóstico do câncer. Porém, a sobrevida é aumentada artificialmente em pacientes que fazem o rastreamento. 

O primeiro motivo do aumento artificial da sobrevida é o sobrediagnóstico, que aumenta o número de casos da doença, assim como o número de pacientes curados. O segundo motivo é a antecipação do diagnóstico. Para que tenha sucesso, o rastreamento precisa antecipar o momento do diagnóstico. E essa antecipação aumenta artificialmente a sobrevida, porque os pacientes vivem mais tempo após o diagnóstico, mesmo quando suas vidas não foram prolongadas pelo rastreamento. Imagine o cenário onde um grupo de pacientes não rastreados são diagnosticados pelos sintomas aos 61 anos e morrem pelo câncer aos 65 anos. Como nenhum paciente viveu 5 anos após o diagnóstico, a sobrevida em 5 anos foi 0%. Agora, imagine que as pessoas rastreadas são diagnosticadas aos 59 anos, mas também morrem aos 65 anos. Note que em ambos os casos a morte pelo câncer ocorreu no mesmo momento, independente se as pessoas fizeram ou não rastreamento; ou seja, o rastreamento não prolongou a vida. Mesmo assim, a sobrevida em 5 anos aumentou para 100%.   

Por esses motivos, a sobrevida não pode ser usada como evidência da eficácia do rastreamento [5]. Não é apenas o público que é enganado pelas taxas de sobrevida. Em uma pesquisa com médicos americanos [6], 76% responderam equivocadamente que melhoras taxas de sobrevida significa que o rastreamento é eficaz. Apenas a redução da mortalidade pode mostrar que o rastreamento salva vidas. Além disso, 49% também responderam que mais casos de câncer detectados pelo rastreamento representa eficácia. Isso é um equívoco porque o rastreamento não deve diagnosticar mais casos do que seria diagnosticado; o rastreamento deve antecipar o tempo do diagnóstico. Mas isso também não é tudo: só será relevante antecipar o diagnóstico se o tratamento precoce for mais eficaz.  Já em uma pesquisa com estudantes e profissionais de saúde no Brasil [2], 95% dos participantes superestimaram os benefícios do rastreamento com mamografia em pelo menos 30 vezes. 

O Instituto Nacional do Câncer (INCA) recomenda a realização do rastreamento com mamografia a cada dois anos para mulheres entre 50 e 69 anos. Fora dessa faixa etária e periodicidade, o balanço entre riscos e benefícios é desfavorável [7]. Já para o câncer de próstata, o INCA não recomenda a realização de rastreamento, por considerar que os danos são maiores que os benefícios [8] e incluem sobrediagnóstico e sobretratamento com consequências tais como incontinência urinária e impotência sexual.

O conhecimento científico de que rastreamento causa danos existe há algum tempo. Está na hora de pararmos com as mensagens recheadas apenas de benefícios exagerados e tom agressivo e começarmos a informar corretamente a população e os profissionais de saúde. 


Termos e Mitos: 

  • Rastreamento: a busca sistemática de uma doença, como câncer de mama ou câncer de próstata, através de exames periódicos de check-up em pessoas sem sinais e sintomas da doença. 
  • Mito: não há exames capazes de prevenir cânceres de mama ou próstata. Pelo contrário, tais exames aumentam o número de diagnósticos do câncer de mama e próstata.
  • Sobrediagnóstico do câncer: a detecção de um câncer que não progrediria, não causaria sintomas e nem ameaçaria a vida do indivíduo. Um paciente com sobrediagnostico morreria por outras causas sem nem saber que tinha câncer, mas descobriu devido à realização de exames de rastreamento. 
  • Sobretratamento: uma consequência do sobrediagnóstico. É o tratamento desnecessário de pessoas que foram sobrediagnosticadas. 
  • Sobrevida em 5 anos: Percentual de pacientes vivos cinco anos após o diagnóstico. Com o aumento do número de exames de rastreamento, as sobrevidas em 5 ou 10 anos de diversos cânceres aumentaram significativamente. Não indica eficácia do rastreamento. Também não pode ser usada para comparar o sucesso de sistemas de saúde de países ou regiões diferentes. Como a aderência e frequência do rastreamento é diferente por países e até regiões, as sobrevidas tornam-se incomparáveis.
  • Mito: é sempre possível descobrir o tumor anteriormente ou que necessariamente o tumor só progrediu porque a pessoa não fez antes exame de check-up. A realidade é que casos mais agressivos não são muito ajudados pelos exames de check-up, já que provavelmente vão causar sintomas no intervalo entre exames.

É importante ficar atento aos sinais e sintomas de alerta e buscar logo atendimento médico. Isso vale também para pacientes que fazem os exames de rastreamento, já que há casos de câncer que causam sintomas no intervalo entre os exames e também casos que não são detectados nos exames de rotina. Você não deve esperar o próximo exame caso perceba alguma alteração, mesmo que tenha feito um check-up recentemente.


Referências

1. Domenighetti G, Avanzo BD, Egger M, et al. Women’s perception of the benefits of mammography screening: population-based survey in four countries. International Journal of Epidemiology. 2003 Oct; 32:816-21  

2. Migoswki A, Stein AT, Silva GA, et al. Adherence to national guidelines for early detection of breast cancer in Brazil: challenge regarding the implementation in primary health care. Conference: 21st WONCA World Conference of Family Doctors 2016.

3. Keating, NL, Pace LE. Breast cancer screening in 2018: time for shared decision making. JAMA. 2018 May 1; 319(17):1814-1815. doi: 10.1001/jama.2018.3388. doi:10.1001/jama.2018.3388

4. Carter, SM, Barratt A. What is overdiagnosis and why should we take it seriously in cancer screening? Public Health Res Pract. 2017 Jul; 27(3). doi: 10.17061/phrp2731722.

5. Migowski A. A detecção precoce do câncer de mama e a interpretação dos resultados de estudos de sobrevida. Cien Saude Colet. 2015 Apr; 20(4):1309. doi: 10.1590/1413-81232015204.17772014

6. Wegwarth O, Schwartz LM, Woloshin S, et al. Do physicians understand cancer screening statistics? A national survey of primary care physicians in the United States. Annals of Internal Medicine 2012 Mar; 156:340-9. doi: 10.7326/0003-4819-156-5-201203060-00005.

7. Migowski A, Silva GAE, Dias MBK, Diz MDPE, Sant'Ana DR, Nadanovsky P. Diretrizes para detecção precoce do câncer de mama no Brasil. II – Novas recomendações nacionais, principais evidências e controvérsias. Cad Saude Publica. 2018 Jun; 34(6):e00074817. doi: 10.1590/0102-311X00074817.

8. Instituto Nacional de Câncer. Rastreamento do Câncer de Próstata. Disponível em: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files//media/document//rastreamento-prostata-2013.pdf

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Felipe Nogueira é Doutor em ciências médicas pela UERJ, além Mestre e Bacharel em informática pela PUC-Rio. Divulgador da ciência e do pensamento crítico com artigos publicados nas revistas Skeptical Inquirer Skeptic e no seu blog Ceticismo e Ciência. 

Arn Migowski é médico epidemiologista, Doutor em saúde coletiva pela UERJ, chefe da Divisão de Detecção Precoce do INCA e pesquisador do Instituto Nacional de Cardiologia.



sábado, 9 de janeiro de 2021

Calculando a eficácia de vacinas

 por Felipe Nogueira


Há um entendimento equivocado sobre eficácia de vacinas. Uma eficácia de 95%, por exemplo, não quer dizer que 5% dos vacinados adoeceram. 

A imagem abaixo mostra uma forma simplificada de como fazemos o cálculo da eficácia, utilizando como exemplo o estudo clínico randomizado da vacina da Pfizer/BioNTech: 



A imagem está simplificada, pois utiliza o conceito de risco relativo. Em muitos estudos randomizados, como os das vacinas para Covid-19, é utilizado análise do tempo até o evento. Em outras palavras, é levado em consideração o tempo que cada pessoa contribuiu no estudo. Por exemplo, quanto tempo os casos de Covid-19 demoraram para acontecer em cada paciente (ou quanto tempo levou até um paciente desistir). 


O importante é notar que, para uma vacina com eficácia de 78%, o desenho da imagem abaixo está errado: 


Eficácia de uma vacina é sempre calculada de forma relativa ao grupo controle (os que receberam placebo ou que não foram vacinados).


segunda-feira, 4 de maio de 2020

Ceticismo sobre rastreamento do câncer: Entrevista com Dr. H Gilbert Welch



publicado na Skeptical Inquirer Vol 44, No. 1 (Jan/Feb 2020) 
Versão original em arquivo PDF ou link


por Felipe Nogueira



Dr. H. Gilbert Welch é um médico americano e pesquisador do rastreamento do câncer. Como um ex-professor de políticas de saúde e prática clínica no Dartmouth Institute, ele publicou muitos artigos científicos sobre os danos da detecção precoce e, especificamente, o rastreamento do câncer  a busca sistemática pelo câncer antes do aparecimento dos sintomas.  

Welch também é um autor de livros para o público geral. Seu primeiro livro, publicado em 2004, é Devo Ser Testado Para o Câncer ? Talvez Não e Aqui Está O Porquê*. Welch, junto com os pesquisadores Lisa Schwatz e Steven Woloshin escreveram o livro Sobrediagnosticado - Tornando As Pessoas Doentes Na Busca Pela Saúde*, que discute o rastreamento e outros casos nos quais a medicina foi excessiva, provavelmente causando mais dano do que benefício. Seu último livro foi publicado em 2015 e chama-se Menos Medicina, Mais Saúde - 7 Suposições Que Geram Cuidado Médico Excessivo*. 

Nesta entrevista, eu e Welch discutimos porque diagnosticar um câncer precocemente pode ter consequências negativas. 


Dr. H Gilbert Welch

Nogueira: Ao lidarmos com problemas do rastreamento, como podemos levar a mensagem correta para o publico não entender que toda a assistência médica está sendo criticada?  

Welch: Eu sou um médico treinado da forma convencional e eu acredito que o cuidado médico pode fazer muito bem  especialmente para pessoas doentes. Fazer um diagnóstico em pessoas doentes é realmente importante. O que me preocupa é quando o cuidado médico expande para a população saudável  porque é díficil melhorar a saúde de uma pessoa que já está bem, mas torná-la pior não é tão díficil.   

Podemos envolver mil pessoas em um programa de rastreamento do câncer por dez anos e uma pessoa será ajudada. Isso é bom, mas uma pergunta importante é: O que ocorreu com os outros 999? É onde estou na minha carreira nos últimos 20 anos. 

NogueiraQual a principal idéia do rastreamento e seus problemas? 
Welch: No passado, os médicos esperavam os problemas de saúde aparecerem na população e diagnosticavam e tratavam esse grupo. A ideia do rastreamento ou detecção precoce é antecipar o momento do diagnóstico nessa mesmo população. A premissa do rastreamento é que as pessoas diagnosticadas precocemente seriam aquelas destinadas a desenvolver os problemas. 

Entretanto, na realidade tem sido diferente: sempre que procuramos por formas precoces de doença, encontramos mais pessoas. Isso significa que nem todos desenvolveriam problemas. Como não sabemos quem desenvolveria problemas ou não, tendemos a tratar todos.  Ou seja, nós estamos tratando algumas pessoas cujas doenças nunca seriam um problema — esse é o grupo dos sobrediagnosticados e tratados desnecessariamente. Eles não podem ser ajudados, mas podem ser prejudicados. 

O sobrediagnóstico acontece relativamente em poucas pessoas. Um problema mais comum do rastreamento é o falso positivo. Muitas pessoas precisam de múltiplas visitas e testes antes de termos certeza que não eles não têm câncer. Os pacientes entendem que medicações podem causar danos, mas não conseguem entender como um teste pode fazer mal. Eles pensam que é sempre bom saber, mas eles não entendem a cascata de eventos que um teste pode causar. Até um teste perfeitamente seguro pode levar a uma série de eventos que pode fazer mal às pessoas. 

Finalmente, para promover o rastreamento, precisamos amendrotar as pessoas a respeito da doença ("esse é o motivo que você precisa ser rastreado"). Em outras palavras, estamos fazendo com que as pessoas fiquem mais preocupadas com o futuro. Irônicamente, uma parte de ser saudável é não ser tão preocupado com a saúde. O rastreamento é responsável por injetar um pouco de ansiedade na população.

Capa da Skeptical Inquirer da edição Jan/Fev de 2020

NogueiraQual o efeito do rastreamento nas estatísticas de sobrevida? 
Welch: Com mais detecção, o paciente típico aparenta estar melhor. Entre os pacientes com a doença, eles parecem que sobrevivem mais tempo. Isso acontece porque as pessoas sobrediagnosticadas ou com formas mais brandas da doença agora são incluídas no grupo da "doença". Os efeitos do rastreamento são realmente enganosos: quanto mais você procura, mais você encontra e todo mundo aparenta estar melhor. Está relacionado com o paradoxo da popularidade do rastreamento: quanto mais sobrediagnóstico o rastreamento causa, mais popular é o rastreamento.  

Nogueira: O que aprendemos sobre a progressão do câncer e sua relação com o rastreamento?
Welch: O câncer é muito mais heterogêneo do que pensávamos. Anormalidades que preenchem a definição patológica do câncer podem ter histórias naturais muito diferentes; elas tem variadas taxas de crescimento.  

Isso pode ser entendido através da analogia do celeiro dos cânceres. Há três animais no celeiro: os pássaros, os coelhos e as tartarugas. O objetivo do rastreamento é colocá-los dentro da cerca de capturá-los precocemente. No entanto, não podemos capturar os passáros, porque eles já foram embora. Os passáros são os cânceres mais agressivos; eles já estão espalhados quando se tornam detectáveis. O rastreamento não ajuda nesses cânceres. Às vezes, podemos tratá-los, mas eles são o pior tipo.  

É possível capturar os coelhos se contruirmos cercas o suficiente. Os coelhos são os cânceres que podem ser detectados precocemente e que trazem problemas para os pacientes. Então, rastreamento pode ajudar nesses casos. Mas, para que o rastreamento ajude, tratar mais cedo precisa ser mais efetivo do que mais tarde. Às vezes, isso não é verdade. No caso do câncer de mama, um tumor de 2 centimetros pode ser tratado da mesma maneira como um tumor de 1 centímetro.  

Finalmente, não precisamos de cercas para as tartarugas  porque elas não vão a nenhum lugar. As tartarugas preenchem a definição patológica do câncer. Entretanto, esses cânceres não crescem ou crescem tão devagar que nunca causariam problemas até que o paciente morra de outra coisa. Ou eles estão até regredindo—alguns cânceres começam e desaparecem; talvez foram reconhecidos por um sistema imune competente.

A triste realidade é que o rastreamento do câncer é muito bom em encontrar tartarugas. Os médicos não conseguem distinguir entre tartarugas e coelhos, então tratamos todo mundo criando o maior dano da detecção precoce: o sobrediagnóstico e o sobretratamento. 

Nogueira: Como o rastreamento afetou a incidência do câncer de próstata? 
Welch: Note como a incidência do câncer de próstata nos Estados Unidos varia bastante (veja a Figura 1). Não há nenhuma biologia do câncer ou processo carcinogênico que consegue explicar esse gráfico. Parece mais com um gráfico financeiro do que um gráfico de incidência de câncer. E não é um problema pequeno; é o tumor mais comum na base de dados. 

O gráfico pode ser dividio em quatro fases. Começa em 1975 com o crescimento da resecção transuretal da próstata (TURP), que nessa época era uma cirurgia da próstata comum feita para ajudar homens com próstata aumentada. Com mais amostras de próstatas sendo enviadas a patologistas, a incidência do câncer de próstata aumentou devagar. A segunda fase é a promoção do teste de PSA, quando os hospitais começaram a oferecer testes de PSA gratuitos, sabendo que recuperariam o dinheiro em subsquentes exames de sangue, biópsias e tratamento. Por volta de 1995 começa a época da contenção, com urologistas reconhecendo que eles não deveriam oferecer rastreamento com PSA para homens com expectativa de vida menor que 10 anos, uma vez que eles não podem ser beneficiados pelo rastreamento. Finalmente, o desencorajamento começa quando a Força Tarefa de Serviços Preventivos dos Estados Unidos (USPSTF) recomenda contra o PSA. É impressionante que a incidência atual é quase a mesma de 1975. Em outras palavras, esse é um câncer dependente de escrutínio. Eu não conheço melhor exemplo de como o sistema de saúde pode afetar a quantidade aparente de câncer.


Figure 1 - Incidência de câncer de próstata ajustada pela idade nos Estados Unidos entre 1975–2014 (Welch and Brawley 2018).

Nogueira
Qual o efeito dos programas populacionais de rastreamento do câncer (para os cânceres colo de útero, colorretal, de mama e de próstata, na mortalidade desses cânceres?
Welch: Nunca tivemos um estudo randomizado do rastreamento do câncer de colo de útero; foi implementado antes de considerarmos estudos randomizados. Há muitos dados observacionais sugerindo que é benéfico, mas não explica a redução de 80% na mortalidade do câncer de colo de útero. Por exemplo, vimos uma redução de 80% da mortalidade no câncer de estomâgo, que é um câncer que não fazemos nenhum rastreamento. A mortalidade do câncer colorretal também está em declínio, mas a queda começou antes da introdução do rastreamento. 

O rastreamento para o câncer de colo de útero e colorretal teve algum impacto na mortalidade desses cânceres. O rastreamento do câncer mama teve um efeito pequeno na mortalidade do câncer de mama. O maior efeito nos cânceres de mama e próstata foi a melhoria no tratamento — aprendemos que ambos são doenças hormonais. 

Nogueira:Como você analisa a relação de risco e benefício desses programas de rastramento do câncer? 
Welch: Em geral, as pessoas consideram o rastreamento dos cânceres de colo de útero e colorretal no lado de mais benefício do que dano. Acho que isso ocorre porque o sobrediagnóstico do câncer é menos evidente nesses casos. Uma vez que eles detectam lesões pré-cancerosas, o sobrediagnóstico ocorre numa etapa anterior  pólipos ou displasia cervical. No rastreamento do câncer colorretal, há complicações de colonoscopia e politectomias (como sangramento e perfurações). No rastreamento do câncer do colo de útero, há complicações da crioterapia e das excisões das lesões pré-cancerosas (como sangramento e parto prematuro)

O rastreamento do câncer tem um efeito misto. A maioria, incluindo PSA e mamografia, ajuda poucas pessoas, mas faz mal a outras. Esse é o dilema que precisamos ser claro. Então, o rastreamento não é um imperativo da saúde pública; é uma escolha. 

E o rastreamento pode distrair as pessoas de coisas mais importantes que eles poderiam fazer para a saúde. E pode distrair recursos de outras intervençoes mais importantes. Há dois aspectos bem diferentes da palavra prevenção. Um é a promoção da saúde através de conselhos comportamentais, como não fumar, tenha uma alimentação saudável, se movimente com frequencia e tenha bons relacionamentos. Essas recomendações não sexy ou tecnológicas, mas são muito importante para saúde. Mas quando o movimento de prevenção se tornou medicalizado, ele virou um imperativo tecnológico pela procura das formas precoces das doenças. 

Nós também precisamos ser sensíveis com o problema do sobrediagnóstico. Temos de parar de pensar que o melhor exame é aquele que encontra mais câncer. É assim como os exames são promovidos, "esse exame acha mais câncer do que aquele". Esse não é um bom exame; não queremos encontrar mais cânceres; nós queremos encontrar aqueles cânceres que importam

Nogueira: Como podemos melhorar o rastreamento, por exemplo para encontrar esses cânceres onde podemos fazer a diferença? 
Welch: Isso é melhor exemplificado no caso do rastreamento do câncer de pulmão. Nos Estados Unidos, o câncer de pulmão é a causa mais comum de morte por câncer; é um grande problema. Há um grupo de alto risco bem definido, que pode ser identificado com uma única pergunta "Você é fumante?" Temos de fato uma causa comum de morte e um modo fácil de encontrar um grupo de alto risco — é a situação perfeita para o rastreamento. 

Foi o primeiro câncer estudado no contexto de rastreamento e ocorreu na década de 80, usando radiografia de tórax. Os resultados foram bem decepcionantes: rastreamento levou a mais mortes; não menos. Isso aconteceu porque o rastreamento desencadeou operações e algumas pessoas morreram dessas operações. A ideia do sobrediagnostico no câncer de pulmão era doida, mas aconteceu. Então, veio o rastreamento usando TC espiral. Os pesquisadores responsáveis pelo estudo com TC espiral sabiam do problema do sobrediagnóstico. O que eles fizeram foi inovador; quando a TC espiral encontrava alguma lesão preocupanete, eles não agiam e não faziam a biópsia de imediato; eles esperavam três meses para saber se a lesão estava crescendo. Eles usaram o valor diagnóstico do tempo. O tempo provê informação tanto sobre a genética do tumor quanto sobre a reação do corpo. É um passo para a frente para a melhoria do rastreamento.  

Tudo muda quando você olha para um a população de alto risco (lembre que fumantes são 20 vezes mais prováveis de morrerem de câncer de pulmão do que não fumantes). Um grupo de alto risco é muito menos provável de ser sobrediagnosticado e mais provável de ser ajudado. Mas não há fatores de risco tão comuns e tão poderosos como tabagismo. A maioria dos cânceres ocorre de forma esporádica e não por causa de um fator de risco óbvio. 

Nogueira: Nos estudos clínicos dos programas populacionais de rastreamento do câncer, não há redução da mortalidade geral. Pode explicar por que isso é importante? 
Welch: Começa com o que consideramos uma morte por câncer. No contexto de avaliar um rastreamento, eu quero que a morte pelo câncer inclua não só mortes causadas pelo câncer assim como mortes causadas pelas intervenções realizadas para procurar e tratar o câncer. E não é isso que acontece. É por isso que a mortalidade geral é importante. Se vamos falar para as pessoas que rastreamento "salva vidas", eu gostaria de saber se o rastreamento muda o risco de morte. A não ser que você queria entrar no jogo de que uma morte é mais importante do que outra. 

Um bom exemplo é um estudo clássico — o estudo de Minnesota. Atualmente tem 30 anos de acompanhamento (follow-up). Há três grupos no estudo: rastreamento anual, bienal e grupo controle. Depois de 30 anos, 2% do grupo anual e 3% do grupo controle morreram de câncer colorretal. Este é o benefício: 1%, ou em termos relativos, uma redução de 33% da mortalidade do câncer colorretal. Entretanto, a mortalidade geral foi a mesma em todos os grupos (Figura 2). É díficil dizer que isso é salvar vidas; podemos estar trocando uma forma de morte por outra. 


Figure 2. O estudo do rastreamento do câncer colorretal de Minnesota: A mortalidade geral foi a mesma entre três grupos: controle (não rastreados), rastreamento anual, e rastreamento bienal (Shaukat et al. 2013).
Nogueira: Dado que os benefícios do rastreamento não são grandes e há danos, quais as razões pela forte promoção do rastreamento? 
Welch: A primeira é a crença genuína que a detecção precoce ajuda, como uma solução para um doença ruim. Dinheiro é outro motivo, porque rastreamento é uma boa maneira de recrutar novos pacientes. É bom para a indústria farmacêutica, para fabricantes de exames e bom para nossos hospitais. A idéia de procurar por doença precoce é poderosa: se você argumentar que todo mundo deve fazer alguma coisa, é um grande mercado. 

Nogueira: O que você pode dizer sobre o exame clínico da mama e o auto-exame da mama frequentemente divulgados para mulheres?
Welch: Os dados são claros que o exame clínico da mama e ensinar as mulheres a se auto-examinarem parecem não ajudar. Mas se uma mulher perceber um novo caroço na mama, ele deve ser avaliado. Parte da atenção ao câncer de mama foi boa. Ironicamente, é possível que a mamografia seja a melhor maneira de fazer o exame clínico da mama, se o limite de anormalidade fosse para coisas de 1-cm ou maiores. Acho que muito do dano da mamografia poderia ser reduzido se os limites para investigações subsequentes fossem muito maiores. 

O dilema do rastreamento é que temos de envolver um bom número de pessoas para potencialmente ajudar algumas. Temos de prestar atenção para não perturbar as demais. 

Nogueira: Como você analisa o artigo que afirmou um aumento em casos avançados de câncer de próstata após a recomendação contra o rastreamento da USPSTF de 2012?
Welch: Esse relato — um número aumentado de casos avançados de câncer de próstata — tinha muitas falhas. Eles falaram apenas de "contagem"; eles nunca tiveram um denonimador. 

Nos dados dos Estados Unidos até agora (Figure 3), a incidência do câncer de próstata metástico na primeira apresentação — o câncer que já é metástico no momento do diagnóstico — continua estável. Mas espero aumentar. 

O que você observa é que a implementação do rastreamento com PSA teve um efeito nessa incidência — quase caiu pela metade. Isso é um sinal que os cânceres ruins estão sendo encontrados mais cedo. Mas agora está bem estável, mas eu não me surpreenderia se subisse novamente, porque o rastreamento com PSA está caindo. Se isso muda a mortalidade, é uma pergunta separada, porque, para isso ocorrer, o tratamento prococe precisa fazer a diferença. 

Note, em comparação, que a incidência do câncer de mama metástico na primeira apresentação nunca  mudou; é bem estável. O rastreamento mamográfico não tem conseguido reduzir a quantididade de câncer de mama diagnósticado nesse estágio mais avançado. Essa culpa não é dos radiologistas, a culpa é dos casos mais agressivos (os passários na analogia do celeiro).


Figura 3. Incidência de câncer de mama metastático na primeira presentação nos Estados Unidos, 1975–2012 (Welch et al. 2015).

Notas: 
* Nenhum dos livros escritos por Gilbert Welch possui edição no Brasil. Os títulos mencionados no texto são tradução livre dos livros com os seguintes títulos (na ordem que aparecem):  

  • Should I Be Tested For Cancer? Maybe Not and Here’s Why;
  • Overdiagnosed – Making People Sick in the Pursuit of Health; 
  • Less Medicine, More Health – 7 Assumptions That Drive Too Much Medical Care. 

Referências:

Shaukat, A., S.J. Mongin, M.S. Geisser, et al. 2013. Long-term mortality after screening for colorectal cancer. N Engl J Med. 369(12):1106-14. doi: 10.1056/NEJMoa1300720.

Welch, H.G., O.W Brawley. 2018. Scrutiny-Dependent Cancer and Self-fulfilling Risk Factors. Ann Intern Med. 168(2):143-144. doi: 10.7326/M17-2792.

Welch, H.G., D.H. Gorski, P.C. Albertsen. 2015. Trends in Metastatic Breast and Prostate Cancer — Lessons in Cancer Dynamics. N Engl J Med 373:1685-1687 doi: 10.1056/NEJMp1510443

terça-feira, 2 de abril de 2019

Rastreamento dos cânceres de próstata e mama: é mais complexo do que parece



publicado na Skeptical Inquirer Volume 43.1 (Jan/Fev 2019)

O rastreamento do câncer busca pela doença antes de seus sintomas aparecem. As mensagens encorajando o rastreamento dos cânceres de próstata e mama contêm estatísticas enganadoras e  também não discutem o principal dano do rastreamento: ser diagnosticado e tratado desnecessariamente.

Felipe Nogueira




O
utubro Rosa e Novembro Azul são campanhas de conscientização dos cânceres de mama e próstata, respectivamente. No Brasil e em outros países, a população é incentivada a realizar exames como o PSA para o câncer de próstata e mamografia para o câncer de mama. 

A principal ideia é o rastreamento (screening): fazer exames em pessoas assintomáticas, com objetivo de detectar a doença antes dos sintomas aparecerem e, com isso, aumentar as chances de cura e até oferecer um tratamento menos agressivo. Um bom exemplo é o rastreamento do câncer de colo de útero, onde a incidência de casos avançados diminuiu depois que o exame Papanicolau foi iniciado (Adegoke et al. 2012). Entretanto, estudos que analisam a eficácia do rastreamento dos cânceres de próstata e mama mostram que a realidade não é tão simples como divulgada nessas campanhas.

Em Maio de 2018, a Força-Tarefa de Serviços Preventivos dos Estados Unidos (USPSTF) revisou os estudos de rastreamento do câncer de próstata com PSA (Fenton et al. 2018). Apenas dois estudos randomizados controlados tiveram qualidade suficiente para avaliar o impacto do PSA na mortalidade. Um deles chamado de PLCO1 não mostrou diferença na mortalidade. O segundo estudo, chamado ERSPC2, mostrou que o rastreamento reduziu a mortalidade do câncer de próstata em homens entre 55-69 anos. Mas ainda assim não é tão simples. Para evitar uma morte por câncer de próstata e três casos de câncer de próstata com metástase, 1000 homens entre 55-69 anos precisaram ser rastreados a cada quatros anos durante 13 anos. Dos 1000, 27 homens receberam tratamento  cirurgia para remoção da próstata e/ou radiação. Mais importante, a maioria dos homens tratados, 24 pacientes, recebeu tratamento agressivo sem nenhum benefício, apenas danos causados pelo próprio tratamento. Independente de terem feito rastreamento, cinco homens morreram de câncer de próstata. Veja a Tabela 1 para as estimativas completas.


Tabela 1 – Estimativas da USPSTF dos benefícios e danos do rastreamento do câncer de próstata no estudo ERSPC (Fenton et al. 2018).
Uma análise criteriosa do rastreamento tem de considerar os danos causados pelo tratamento. A revisão da USPSTF encontrou que, daqueles que fazem cirurgia para remoção completa da próstata, um em cinco homens desenvolve incontinência urinária e dois a cada três homens têm impotência. Mais da metade daqueles que recebem radiação desenvolve impotência e um em seis desenvolve sintomas intestinais, incluindo urgência e incontinência fecal (Fenton et al. 2018).   

A visão geral de que o rastreamento do câncer de próstata pode fazer mais mal do que bem é longe de ser novidade. Uma meta-análise de 2013 da Cochrane (Ilic et al. 2013) de cinco estudos não mostrou redução na mortalidade. Em 2012, a USPSTF tinha recomendado contra o rastreamento independente da idade. Atualmente, a USPSTF conclui que os benefícios e malefícios do rastreamento para homens com 55-69 anos são balanceados, recomendando uma decisão individual após uma consideração cuidadosa dos potenciais benefícios e danos. Para homens com 70 anos ou mais, a USPSTF recomenda contra o rastreamento. Veja o link para a Figura de apoio à decisão da USPSTF.


Em relação ao câncer de mama, a evidência parece um pouco mais favorável ao rastreamento, mas não de forma tão clara como as mensagens das campanhas sugerem. Um artigo publicado no JAMA em 2018 (Keating e Pace 2018) estimou que 10 em 10 mil mulheres nos seus cinquenta anos rastreadas anualmente durante dez anos evitariam morte por câncer de mama. Em contrapartida, 940 mulheres seriam submetidas a biópsias desnecessárias e 44 seriam tratadas desnecessariamente com cirurgia, radiação, quimioterapia, ou terapia hormonal. Independente do rastreamento, 62 mulheres ainda morreriam de câncer de mama. Como o tratamento para câncer de mama melhorou muito desde que os estudos foram conduzidos, o benefício do rastreamento pode ainda ser menor do que o reportado (Keating e Pace 2018). Para oferecer benefícios e reduzir os danos, a USPSTF recomenda mamografia para mulheres entre 50-74 anos apenas a cada dois anos e recomenda contra ensinar o auto-exame da mama*.

Essa complexidade não está restrita ao câncer de próstata e mama. Entre 1975 e 2009, a incidência de câncer de tireoide praticamente triplicou nos Estados Unidos; de 4,9 para 14,4 em cada 100 mil pessoas. No entanto, a mortalidade continuou constante: 0,56 a cada 100 mil pessoas (Esserman et al. 2014).  Já um estudo finlandês mostrou que, em 36% dos participantes sem qualquer sinal de doença na tireoide, pelo menos um nódulo do tipo mais brando na tireoide foi detectado na autópsia (Esserman et al. 2014). 


Estudos de autópsia da próstata em homens que morreram por outras causas também mostram um grande “reservatório” de câncer. Em homens autopsiados entre 60-79 anos, a incidência de câncer de próstata variou entre 14 e 77%. Surpreendentemente, câncer de próstata foi encontrado até em homens autopsiados em seus vinte anos de idade, com uma incidência de 8-11% (Sandhu e Adriole 2012).

O que esses dados estão descrevendo é chamado sobrediagnóstico (Welch e Black 2010; Carter e Barrat 2017). O rastreamento detecta principalmente casos de câncer não letais ou indolentes  se não fosse pelo rastreamento, morreríamos com esses cânceres sem nem termos conhecimento que tínhamos a doença.


Sobrediagnóstico não é um resultado falso-positivo, onde após um teste positivo a avaliação subsequente não detecta sinais de câncer. No sobrediagnóstico, a lesão detectada de fato preenche os critérios de diagnóstico para câncer, mas não teria causado sintomas (por exemplo, não teria sido diagnosticado na ausência de rastreamento) (Welch e Black 2010; Carter e Barrat 2017). 

O sobrediagnóstico e sua consequência são os principais danos do rastreamento. Uma vez que no momento do diagnóstico é impossível diferenciar lesões indolentes das letais, quase todos os casos são tratados (Welch e Black 2010). Estimativas sugerem que entre 20 e 60% dos cânceres de próstata detectados por rastreamento foram sobrediagnosticados (Fenton et al. 2018; Carter et al. 2015). Dos cânceres de mama detectados por rastreamento, a estimativa de sobrediagnóstico obtida pelos estudos randomizados é 19% (Keating e Pace 2018), enquanto uma análise de programas de rastreamento reportou 52% (Jørgensen e Gøtzsche 2009). Então, alguns podem se beneficiar do rastreamento do câncer de próstata e mama, porém mais pacientes lidam com danos de um tratamento agressivo que eles nem sequer precisavam.

Uma das premissas do rastreamento é que o câncer tem uma progressão linear, que sempre permite detecção antes de ser letal. Mas essa premissa está desatualizada. O câncer é uma doença heterogênea, com diferentes taxas de progressão (Figura 1) (Carter e Barrat 2017). É mais provável que o rastreamento detecte os casos de câncer que crescem devagar ou que teriam regredido. Criticamente, os mais letais, aqueles que crescem rápido, são menos prováveis de serem detectados pelo rastreamento, uma vez que eles tendem a causar sintomas no intervalo entre exames de rastreamento (Carter e Barrat 2017). 


Figura 1 – Heterogeneidade do câncer. Nem todos os casos tem a mesma taxa de progressão. (Carter e Barrat 2017 – adaptado de Welch e Black 2010).

Enquanto que as mensagens encorajando o rastreamento raramente mencionam sobrediagnóstico, elas frequentemente trazem afirmações como “se o câncer for diagnosticado precocemente, a chance de cura é 95%, mas cai para 20% se for diagnosticado em estágios avançados”. Entretanto, quando há sobrediagnóstico, a proporção de pacientes curados fica enviesada, uma vez que o número de pacientes que sobreviveram vai aumentar “automaticamente”, porque esses pacientes com esses casos não fatais são classificados como "curados", mesmo quando o rastreamento não oferece nenhum benefício. Ironicamente, o aumento da incidência e taxas infladas de cura devido ao sobrediagnóstico podem aumentar os esforços para fazer rastreamento, levando a mais sobrediagnóstico 3 (Brodersen et al. 2018). 

Outra maneira que a estatística de sobrevivência (ou sobrevida) fica enviesada está relacionada com quanto tempo o paciente vive após o diagnóstico. O rastreamento só é eficaz se conseguir detectar doença precocemente. Considere, por exemplo, que sem rastreamento, pacientes são diagnosticados pelos sintomas aos 70 anos e morrem aos 75 anos. Agora, considere que esses pacientes seriam diagnosticados por rastreamento aos 65 anos e morreriam pelo câncer dez anos depois. Com essas descrições, o rastreamento parece ser benéfico, já que quem faz rastreamento tem sobrevida de 10 anos, enquanto que sobrevive 5 anos após o diagnóstico. Em ambos os casos, os pacientes morreram com a mesma idade; o rastreamento apenas antecipou o diagnóstico, sem prolongar a vida. Isso é chamado de viés do tempo ganho (lead time bias) (Raffle e Gray 2007).

Devido a vieses, a estatística de sobrevivência (ou sobrevida) não mostra a eficácia do rastreamento. Se rastreamento é eficaz, a incidência de casos avançados tem de cair. Após a introdução de rastreamento dos cânceres de próstata e mama, é esperado um aumento da incidência de casos iniciais dessas doenças. Isso deve ser seguido, à medida que a população envelhece, por um declínio compensatório em casos avançados, enquanto a incidência geral permanece igual (Esserman et al. 2009). Note na Figura 2 que a incidência de casos iniciais de câncer de mama aumentou significativamente, enquanto que a incidência de casos regionais caiu bem pouco e a taxa de metástases para outras partes do corpo permaneceu estável. Curiosamente, apesar da mortalidade do câncer de mama estar caindo, o declínio foi maior em mulheres jovens não convidadas para o rastreamento (Gøtzsche et al. 2012; Narod et al. 2015). Além disso, a mortalidade do câncer de mama caiu de forma parecida em todos os lugares do mundo, mas o inicio do rastreamento difere entre os países (Gøtzsche 2015a). Observações semelhantes podem ser feitas sobre o câncer de próstata. Após o rastreamento, não houve um declínio significativo da mortalidade como esperado, e diferentes taxas do uso de rastreamento e tratamento não relacionam com a mortalidade do câncer de próstata (Esserman et al. 2009). Essas análises temporais, embora não demonstrem causalidade, indicam que o rastreamento leva a considerável sobrediagnóstico de casos iniciais e seu impacto na mortalidade no melhor caso é pequeno.


Figura 2 – Taxas de incidência dos diferentes estágios do câncer de mama em mulheres americanas e brancas padronizadas pela idade. SEER 9, 1975–2011 (Narod et al. 2015). 


A melhor maneira para avaliar a eficácia do rastreamento é usando ensaios clínicos randomizados, como PLCO e ERSPC. Estudos clínicos comparam o grupo rastreado com um grupo controle, procurando por uma redução das mortes causadas pelo câncer sendo rastreado  o que é chamado de mortalidade específica do câncer. É, por exemplo, a redução na mortalidade do câncer de mama que leva a afirmação que o rastreamento com mamografia “salva vidas”. Porém, como as mulheres sobrediagnosticadas com câncer de mama podem receber radioterapia, que aumenta mortalidade devido a câncer de pulmão (Gøtzsche 2015b), o rastreamento pode causar mais mortes do que mortes evitadas devido ao câncer de mama. Uma vez que as mortes de tratamento são usualmente classificadas como outras causas, a mortalidade especifica do câncer é enviesada a favor do rastreamento. Esse viés é evitado usando a mortalidade geral. O que pode ser assustador é que os estudos clínicos de rastreamento não mostram redução na mortalidade geral. Como Vinay Prasad e coautores escreveram no BMJ, “nunca foi demonstrado que o rastreamento do câncer salva vidas” 4. O rastreamento aumenta as mortes por outras causas? Não sabemos ainda – pode ser apenas “chance”, uma vez que milhões de pessoas seriam necessárias em um estudo clínico para detectar diferença na mortalidade geral. Prasad e coautores acreditam que esses grandes ensaios clínicos são necessários para conhecermos os efeitos do rastreamento. Em contraste, o pesquisador Peter Gøtzsche acredita que fazer tais estudos não é ético, já que muitas pessoas teriam de ser rastreadas sem sabermos se isso prolongaria as suas vidas, enquanto que os faria mais infelizes devido a estresse psicológico causados por falso-positivos e sobrediagnósticos. Devido a pequeno, se algum, beneficio na mortalidade, mas danos documentados, Gøtzche afirmou que o rastreamento com mamografia teria sido retirado do mercado, se fosse um medicamento (Gøtzsche 2015b).

Outros pesquisadores, como a Laura Esserman, acreditam que devemos focar em melhorar o rastreamento. Por exemplo, ela e coautores sugerem não chamar tais casos indolentes usualmente detectados por rastreamento de “câncer” (Esserman et al. 2009) Uma vez que, na cabeça de médicos e pacientes, um diagnóstico de câncer é associado com uma doença letal que causa sofrimento, renomear tais casos para lesões indolentes pode reduzir tratamento desnecessário. Isso foi proposto pela primeira vez pelo menos há dez anos, mas em Agosto de 2018 outros cientistas ainda estão pedindo por essas mudanças (Nickel et al. 2018). Esserman também propôs focar em um rastreamento baseado no risco, que foca em pessoas com alto risco de câncer. Testar se o rastreamento baseado em risco pode reduzir o uso da mamografia sem aumentar casos avançados é o objetivo do estudo Wisdom (Esserman et al. 2017).

Enquanto isso, o publico precisa ser informado adequadamente. As campanhas de conscientização precisam ser usadas para informar a população as complexidades do rastreamento. Isso é bem importante. De acordo com pesquisas de opinião, mulheres superestimam os benefícios da mamografia por um fator entre 10 e 200 (Wegwarth e Gigeren­zer 2018). Além disso, como o rastreamento é frequentemente promovido como prevenção, 68% das mulheres em uma pesquisa de opinião acreditaram erradamente que mamografia reduz as chances de desenvolver câncer de mama. (Domenighetti et al 2003 Como um artigo de perspectiva no New England Journal of Medicine colocou, “Como as mulheres podem fazer uma decisão informada se elas superestimam o beneficio da mamografia tão grosseiramente?” Isso pode ser explicado pela falha dos médicos em comunicar os riscos do rastreamento: em uma pesquisa de opinião com 300 pacientes de rastreamento nos Estados Unidos, 90% deles não receberam informação do seu médico sobre os possíveis danos do rastreamento (Wegwarth e Gigerenzer 2018).


Essa não é a história completa. Uma revisão sistemática mostrou que médicos usualmente superestimam os benefícios do rastreamento e tratamento enquanto que subestimam seus danos. Uma pesquisa de opinião com médicos dos Estados Unidos sugeriu que médicos não compreendem as estatísticas do rastreamento: 76% dos médicos participantes foram enganados pela métrica de sobrevida discutida anteriormente (Wegwarth et al. 2012). Eles equivocadamente pensaram que pacientes diagnosticados por rastreamento com melhores taxas de sobrevida (5 após o diagnóstico) do que pacientes diagnosticados por sintomas significa que o rastreamento salvou vidas. Em um artigo, Wegwarth e Gigerenzer (2018) perguntaram “Por que o conhecimento do risco é tão escasso na saúde?” Os autores discutiram como a dificuldade de entender os riscos e benefícios na saúde provavelmente se deve como a informação estatística é apresentada, em artigos enviesados em períodos médicos e até o uso do risco relativo e estatística enganadora pela mídia. E pesquisas mostram como ferramentas elaboradas para auxiliar a decisão ajudam os pacientes a ficarem mais informados em relação ao rastreamento (Stacey et al. 2014). Os pesquisadores concluíram perfeitamente: “Uma crítica massa de cidadãos informados não irá resolver todos os problemas na saúde, mas pode constituir um grande gatilho para uma melhor saúde” (Wegwarth e Gigerenzer 2018). 





*Observações: 

Adicionada faixa etária de 50-74 anos para da recomendação da USPSTF para rastreamento mamográfico (ausente no artigo impresso na revista). 

As recomendações do Instituto Nacional do Câncer (INCA) são: 
  • O INCA não recomenda o rastreamento para o câncer de próstata em nenhuma faixa etária (Veja no link); 
  • O INCA recomenda rastreamento para o câncer de mama com mamografia para mulheres entre 50 e 69 anos a cada dois anos (Veja mais no link) .   

Notas:
1. PLCO: Prostate, Lung, Colorectal, and Ovarian Cancer Screening Trial
2. ERSPC: European Randomized Study of Screening for Prostate Cancer
3. Isso foi chamado do paradoxo da popularidade: “Quanto maior o dano pelo sobrediagnóstico e sobretratamento gerado pelo rastreamento, mais pessoas acreditarão que devem a saúde, ou ate suas vidas, ao programa”. (Raffle e Grey 2007, 68).
4. Um estudo clínico de 2011 de rastreamento com tomografia em fumantes reportou redução da mortalidade geral. Embora isso seja um caso de rastreamento em um grupo de alto risco, Prasad e coautores consideraram a melhor evidência para redução da mortalidade geral em um estudo de rastreamento do câncer. Entretanto, como discutido pelos autores, uma meta-análise de 2013 para USPSTF não demonstrou redução da mortalidade geral (Prasad et al. 2016). 




Livros interessantes:

· Overdiagnosed: Making People Sick in the Pursuit of Health de H. Gilbert Welch, Lisa Schwartz e‎ Steve Woloshin (2012);



· Mammography Screening: Truth, Lies and Controversy de Peter C. Gøtzsche (2012)



Referências



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Brodersen, J., B.S. Kramer, H. Macdonald, et al. 2018. Focusing on overdiagnosis as a driver of too much medicine. BMJ 362:k3494. doi: 10.1136/bmj.k3494

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