quinta-feira, 23 de agosto de 2012

"Duvidar é preciso", diz Michael Shermer

Na semana que vem, Michael Shermer estará em Porto Alegre e São Paulo como um dos conferencistas do evento Fronteiras do Pensamento. Em abril, ele deu uma entrevista muito boa para o jornal Valor Econômico.  Observem que Shermer critica adequadamente Freud e a psicanálise por falharem no principal componente de ciência: teste de hipóteses.

Uma pequena atualização: a entrevista menciona que o único livro de Michael Shermer traduzido no Brasil é Por Que as Pessoas Acreditam em Coisas Estranhas. No entanto, o seu último livro, The Believing Brain, já foi traduzido e lançado no Brasil na semana passada com o título Cérebro e Crença. Além desses, há dois outros livros de Michael Shermer disponíveis no Brasil: O Outro Lado da Moeda (The Mind of the Market) e Ensine Ciência a Seu Filho e Torne a Ciência Divertida para Vocês Dois (Teach your Child Science).


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Fundador da revista "Skeptic", diretor-executivo da Skeptics Society, colunista da revista "Scientific American" e professor da Claremont University, na Califórnia, o cientista americano Michael Shermer é um destes autores aos quais, para o bem ou para o mal, não se pode ficar indiferente. Shermer integra o time de participantes da sétima edição do Fronteiras do Pensamento - encontro que reúne grandes nomes internacionais em torno de temas contemporâneos desde 2006 -, que começará no dia 23. O evento, que ocorre em São Paulo e Porto Alegre, terá um elenco de conferencistas de destaque em suas áreas de atuação como o Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen e a também indiana Vandana Shiva, filósofa e ambientalista premiada.

Shermer é um radical defensor da ciência como único método válido de explicação do mundo e adepto de um ceticismo científico que se desenvolve a partir de descobertas recentes das neurociências. É dessa imbricação entre neurociência e ceticismo que ele propõe sua principal teoria: a de que o cérebro é feito para acreditar em qualquer tipo de coisa, sejam verdadeiras ou não. O ceticismo seria, então, o único remédio contra essa compulsão à crença que leva o ser humano a crer, até mesmo, em coisas estranhas, como anuncia o título do único livro do cientista traduzido no Brasil: "Por Que as Pessoas Acreditam em Coisas Estranhas" (JSN Editora).

Crítico do relativismo, do criacionismo que se expande nos Estados Unidos e de toda forma de fé religiosa, Shermer reconhece, no ceticismo que prega, a necessidade de relativizar seu discurso, quando afirma, nesta entrevista: "Nós devemos ser céticos em relação à neurociência, à ciência e até mesmo ao ceticismo!"

Valor: Seu novo livro, recém-lançado nos EUA ("The Believing Brain") começa com uma narrativa pessoal sobre as suas crenças. Em que acredita alguém que se define como cético?

Michael Shermer: Ser cético significa que você precisa de evidências antes de acreditar em algo. Evidências confiáveis, claro. Céticos são pessoas que pensam como cientistas, sempre buscando evidências. Mas não é preciso ser cientista para ser cético. Escrevi um capítulo sobre as minhas crenças pessoais, sobre a época em que eu acreditava em Deus, na religião, nos fenômenos paranormais e sobrenaturais e outras coisas desse tipo. Até que me tornei um cientista e aprendi a pensar de forma crítica, cética e científica e resolvi procurar evidências para as minhas crenças. Quando fiz isso, deixei de acreditar nos fenômenos sobrenaturais e paranormais, em Deus, na religião etc. Mas o ponto principal do livro é sobre o fato de que todos nós temos nossas crenças, pois o cérebro funciona de maneira a estabelecer crenças e reforçá-las como verdades.

Valor: O seu ceticismo é um método de levar a dúvida até a última consequência? Haverá sempre algo a duvidar?

Shermer: O objetivo do ceticismo é entender como o mundo funciona. O mundo sempre será como ele é; não importa como queremos que ele seja. O problema é que nosso cérebro está programado para estabelecer crenças e reforçá-las como verdades absolutas, e não é assim que o mundo funciona. O objetivo da ciência é tentar superar essa tendência cognitiva a acreditar, essa tendência a acreditar em coisas nas quais queremos acreditar mesmo quando não existem evidências.

Valor: O senhor acha que acreditar em Deus também é parte dessa tendência? Como explicar a fé religiosa?

Shermer: Nosso cérebro é programado pela evolução para acreditar em todo tipo de coisa, não importa se são verdadeiras ou não, só pela possibilidade de serem verdadeiras. E nós procuramos evidências que se encaixem naquilo em que já decidimos acreditar. Por exemplo, se você é católico e acredita em Deus, só vai procurar evidências que reforcem essa crença e vai ignorar qualquer outra evidência que vá contra isso. Na ciência, isso não é permitido. Você é obrigado a procurar as evidências contrárias à sua teoria. Se você não fizer isso, outra pessoa vai fazer.

Valor: Ainda haveria motivos para o debate sobre o valor da ciência em relação ao valor da religião como forma de explicação do mundo?

Shermer: A ciência é uma maneira de explicar o mundo natural, de tentar entender por que o mundo é assim, utilizando métodos confiáveis. Não importa se eu, você ou alguém na Índia tem uma teoria, todos nós podemos usar um método para verificar se ela é verdadeira ou não. Um exemplo: uma pessoa nascida na Índia provavelmente vai seguir a religião hindu, uma pessoa no Brasil provavelmente vai ser católica, e uma pessoa nascida no Sul dos EUA provavelmente será da religião batista. Portanto, o local onde você nasce vai determinar qual será sua religião, em qual deus você vai acreditar. Na ciência, digamos na física, por exemplo, é diferente. Não existe a física da Índia, do Brasil ou dos EUA. Existe simplesmente a física.

Valor: Há diferença em acreditar na ciência e acreditar em Deus ou tudo é meramente uma questão de acreditar ou não? Esse ainda é um embate necessário no mundo de hoje, sobretudo nos EUA, onde a teoria do criacionismo vem ganhando cada vez mais espaço?

Shermer: É um bom exemplo. Em nenhum outro lugar do mundo, ninguém jamais duvidou da teoria da evolução, exceto nos círculos religiosos dos EUA. O que é mais provável? Que os criacionistas estejam certos ou que o resto do mundo esteja errado? Ou que a crença religiosa deles esteja impedindo que tenham uma visão objetiva do mundo? A opinião de cada um interfere na forma como os dados são analisados. Se você não consegue deixar de lado a sua visão, precisa encontrar alguém que consiga. O que importa para nós, cientistas, é saber se algo é verdadeiro ou não, se está de acordo com a realidade. Se há alguma maneira confiável que permita que eu e você analisemos os mesmos dados para chegar às mesmas conclusões. Os criacionistas duvidam da evolução por razões religiosas. Nós temos que deixar de lado a religião, a política e a economia e analisar os dados para ver se são verdadeiros ou não.

Valor: No Brasil, seu único livro traduzido é "Por Que as Pessoas Acreditam em Coisas Estranhas". A resposta para isso está no cérebro?

Shermer: Sim, o cérebro não consegue viver sem acreditar em nada. Temos que acreditar em diversas coisas para conseguir levantar da cama de manhã, sair de casa para trabalhar. Nós estabelecemos várias crenças e temos que fazer isso para sobreviver. Todos os animais fazem isso. Nós estabelecemos associações, conexões, aprendemos, ligamos A a B, criamos padrões, isso é um processo normal para todos nós. Mas sem a ciência é impossível saber se nossas crenças são verdadeiras ou não. O que a ciência faz é trazer um conhecimento confiável, determinar se uma teoria é verdadeira ou não. Uma teoria não é verdadeira só porque você acredita nela. Ela é ou não é verdadeira.

Valor: É melhor acreditar em coisas estranhas do que não acreditar em nada?

Americanos em protesto religioso: "O local onde você nasce determina em qual deus vai acreditar. Na ciência é diferente. Não existe, por exemplo, a física da Índia, do Brasil ou dos EUA. Existe simplesmente a física", diz Shermer
Shermer: As pessoas acreditam em coisas estranhas porque elas precisam acreditar nas coisas em geral. E não temos a capacidade de diferenciar as coisas verdadeiras das coisas falsas. Por isso, temos uma tendência a acreditar em tudo. As coisas estranhas são apenas uma parte desse todo. A ciência é algo relativamente novo, foi inventada alguns séculos atrás, enquanto nosso cérebro existe há milhões de anos. Portanto, nosso cérebro é programado para estabelecer crenças rapidamente, de forma intuitiva e emocional. Isso é bem diferente da maneira como funciona a ciência.

Valor: Como conciliar seu ceticismo com alegações de que nossos cérebros são, do ponto de vista da neurociência, programados para acreditar? Ou por que não ser cético sobre neurociência também?

Shermer: Devemos ser céticos em relação à neurociência, à ciência e até mesmo ao ceticismo! Não há problema em ser cético sobre tudo. Não há vacas sagradas. No entanto, é importante notar que isso não significa que vale tudo e que todas as "teorias" têm o mesmo valor científico. Toda pessoa tem direito às próprias opiniões, mas nem todo mundo tem direito aos próprios fatos.

Valor: O sr. admite que a neurociência tem se tornado uma forma de explicar tudo, reivindicando para si o que a psicanálise, por exemplo, tinha deixado no inconsciente?

Shermer: A psicanálise estava correta em sua teoria de que muito do que se passa dentro do cérebro acontece inconscientemente, mas não há muito mais que esteja certo na psicanálise. Freud falhou no componente mais importante na ciência: o teste de hipóteses. Ele nunca tentou testar suas hipóteses e baseou suas teorias sobre estudos de caso, o que pode ser muito enganador. Eu sou cético em relação à psicanálise também.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

"A crença no sobrenatural é perigosa", diz Michael Shermer

Michael Shermer é um dos líderes do movimento cético, pensamento crítico e divulgação científica e é um dos grandes inspiradores deste blog. Semana passada, o seu último livro foi lançado em português com o título Cérebro e Crença. Semana que vem, no dias 27 e 29 de agosto, em Porto Alegre e São Paulo, ele será palestrante do evento Fronteiras do Pensamento. Ele foi entrevistado pela Revista Veja:




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fonte: Veja


Há trinta anos o psicólogo americano Michael Shermer se dedica a combater superstições. Ele criou uma ONG, uma revista (Skeptic Magazine), sites e programas de TV focados em promover o pensamento científico e desmascarar charlatões. Shermer, que chega ao Brasil no fim deste mês para uma série de palestras, é autor de quinze livros. O último, Cérebro e Crença, foi lançado em português na semana passada. Nesta entrevista, publicada na edição de VEJA desta semana, ele diz que a tendência a se iludir com fantasias é própria do processo mental humano e defende o combate à crendice em favor do progresso.

Por que as pessoas acreditam no inacreditável?
A evolução fez do cérebro uma espécie de máquina de reconhecimento de padrões na natureza. Às vezes, esses padrões são reais, mas na maioria dos casos são fruto da imaginação. Milhões de anos no passado, ao ouvir um barulho vindo da mata, um hominídeo poderia supor que se tratava de algo inofensivo, como o vento. Se estivesse errado, e fosse um predador, correria o risco de ser devorado. Nosso ancestral poderia, por outro lado, imaginar a presença de uma divindade perigosa no mato e se afastar o mais rápido possível.

A segunda opção é a que a maioria adota. Imaginar o perigo e fugir garante a sobrevivência, mas também a ignorância. Ir até o mato verificar do que realmente se trata o barulho exige curiosidade e uma batalha contra os instintos. É nessa categoria, a dos homens que não se rendem a narrativas fictícias, que se encaixa o cientista. Os crentes seguem a trilha inversa, a dos que se contentam com suposições sobrenaturais. É um fenômeno que tem a ver com a química do cérebro: a convicção de que o pensamento mágico é o que basta para a compreensão do universo produz uma sensação de prazer. Ficamos felizes em imaginar que seres místicos, sejam eles deuses ou extraterrestres, se preocupam e cuidam de nós. Não nos sentimos sós.

Como se sabe que o cérebro é propenso a acreditar no fantástico?
A neurociência identifica padrões de ondas cerebrais distintos que nos levam a criar crendices e a ter prazer na constatação de que temos respostas às nossas dúvidas. Em situações extremas, como as enfrentadas por quem está no limite da resistência física ou próximo à morte, o cérebro reage com a redução da atividade na área responsável pela consciência e o aumento em regiões ligadas à imaginação. Essa reação natural está na origem das alucinações. Não há mistério nesse processo. Os cientistas são capazes de produzir visões ou a sensação de transcendência espiritual com o estímulo artificial de certas áreas do cérebro.

O senhor foi um cristão evangélico ativo no esforço de atrair fiéis para sua igreja. Como se tornou um cético?
Somos mais abertos à religião na juventude e na velhice. Naturalmente, no fim da vida é comum procurar por conceitos reconfortantes, ainda que irreais. No meu caso, o apelo da crendice me atingiu na juventude, como uma explicação fácil para tudo o que existe. A religião tem um apelo social enorme. O ambiente alentador de uma comunidade ajuda a afastar as dúvidas até daqueles que não acreditam plenamente no sobrenatural e nos dogmas religiosos. Desvencilhei-me da crença ao entrar para a comunidade científica. O método científico, cujo princípio básico é o de que qualquer afirmação deve ser comprovada em experimentos repetidos, alimenta o ceticismo e favorece o progresso.

O que faz com que a ciência seja a melhor ferramenta para explicar o mundo?
A ciência é democrática. Qualquer um pode estudar e chegar a conclusões racionais. Cientistas estão abertos à possibilidade de estarem errados e, por isso, promovem a invenção e a reinvenção de conceitos. É o que garante o avanço do conhecimento. A crendice é intolerante. Fixa uma verdade e não abre espaço para perguntas. Se nos apegássemos apenas ao sobrenatural, nunca teríamos saído da floresta e criado a civilização.

No mundo moderno, ainda precisamos da crença?
É impossível deixar de crer. A ciência também depende da nossa capacidade de elaborar crenças. Qualquer experimento nasce com uma premissa baseada no que se acredita ser verdade. Ideologias também precisam da habilidade de crer. Eu acredito no liberalismo, na democracia e nos direitos humanos. Podemos, porém, abandonar o que não pode ser explicado, como deuses e bruxos. Não nos faria falta.

Há vantagens na crença?
A evolução nos concedeu a habilidade de acreditar por boas razões. A crença em divindades nos levou a temer o mundo e, com isso, nos ajudou a sobreviver nele. Também contribuiu para a formulação de leis que regiam comunidades primitivas. A moral e a ética nasceram na religião.

Se a ética tem origem religiosa, por que ela prevalece na sociedade laica?
As igrejas se tornaram um fator de corrupção, motivo de guerras e perseguições. Por sorte, presenciamos o declínio da crença no sobrenatural. Países do norte europeu, onde apenas um quarto da população segue alguma religião, têm índices de criminalidade, suicídio e doenças sexualmente transmissíveis inferiores aos de estados em que a maioria dos habitantes é de crentes, como os Estados Unidos e o Brasil. Se a religião se declara um bastião da bondade, por que, historicamente, estados teocráticos são mais suscetíveis à criminalidade do que os seculares?

Apesar de vivermos na era da ciência, cresce a crença no sobrenatural. Por quê?
É verdade que vivemos num mundo em que a ciência faz parte do dia a dia. Todos gostam de iPhones e admiram as naves que pousam em Marte. Mas poucos abdicam de crenças sobrenaturais e aceitam a ciência como ferramenta para explicar o universo. A maioria só quer aproveitar os produtos da ciência. Quando se trata de responder a dúvidas primordiais, como a origem do universo ou o sentido da existência, preferem explicações irreais, mas convincentes em suas narrativas fictícias.

Por que o senhor se dá ao trabalho de combater a superstição?
Sempre me perguntam por que não deixo os crentes em paz. Ocorre que a crença no sobrenatural não é inócua. Ao contrário, é bastante perigosa. Acreditar na dita medicina alternativa é um exemplo. Muita gente morre por substituir o tratamento médico sério por procedimentos supersticiosos, como o consumo de ervas com propriedades supostamente milagrosas.

Não é possível provar a existência de divindades e criaturas fantásticas. O senhor concorda que também é difícil provar que não existam?
O fato de não explicarmos um mistério não significa que ele exija explicações sobrenaturais. Só mostra que ainda não há resposta. O ônus da prova cabe aos crentes. O cético só crê no que é provado. Nesse aspecto, a ciência tem feito bom trabalho ao desmascarar mitos. No passado, já se acreditou que a Terra viajava pelo cosmo no lombo de um elefante. Existem 10.000 religiões. Espanta-me a arrogância de quem supõe que só uma crença seja correta em meio a tantas.

O senhor leva em consideração que pode estar errado?
Assim como todos, só descobrirei a resposta quando morrer. Como cientista, estou aberto à possibilidade de ter me enganado. Se houver um ou vários deuses, ficarei surpreso. Mas não tenho medo. Se há um Deus, ele me deu um cérebro para pensar. Meu pecado seria usá-lo para raciocinar e buscar explicações? Um ser benevolente não me puniria por utilizar bem as armas que me concedeu.