sexta-feira, 13 de abril de 2018

O Legado Científico de Stephen Hawking

por Sean Caroll
fonte: Preposterous Universe
tradução: Felipe Nogueira

Stephen Hawking é o raro cientista que também é uma celebridade e um fenômeno cultural. Mas ele também é o raro fenômeno cultural cuja celebridade é inteiramente merecida. Suas contribuições podem ser caracterizadas de forma bem simples: Hawking contribuiu mais para o nosso entendimento da gravidade do que qualquer outro físico desde Albert Einstein. 

"Gravidade" é uma palavra importante aqui. Durante grande parte da carreira de Hawking, a física teórica como comunidade esteve muito mais interessada na física de partículas e em outras forças da natureza - eletromagnetismo e as forças forte e fraca. A gravidade "clássica" (ignorando as complicações da mecânica quântica) foi descoberta por Einstein na sua teoria da relatividade geral, e  a gravidade quântica (criando uma versão quântica da relatividade geral) parecia muito difícil. Aplicando seu prodigioso intelecto à força mais conhecida da natureza, Hawking foi capaz de chegar a diversos resultados que surpreenderam completamente a comunidade. 

Por aclimatação, o resultado mais importante de Hawking é a realização que buracos negros não são completamente negros - eles emitem radiação, da mesma maneira como objetos comuns. Antes desse artigo famoso, ele provou teoremas importantes sobre buracos negros e singularidades, e depois estudou o universo como um todo. Em cada fase de sua carreira, as contribuições dele foram centrais. 

O Período Clássico

Enquanto trabalhava na sua tese de doutorado em Cambridge no meio da década de 1960, Hawking ficou interessado na questão da origem e o destino final do universo. A ferramenta certa para investigar esse problema é a relatividade geral, a teoria de Einstein do espaço, tempo e gravidade. De acordo com a relatividade geral, o que percebemos como "gravidade" é uma consequência da curvatura do espaço-tempo. Entendendo como a curvatura é criada por massa e energia, podemos prever como o universo evolui. Isso pode ser visto como o período "clássico" do Hawking, contrastando a relatividade geral clássica com suas investigações posteriores na teoria quântica dos campos e na gravidade quântica. 

Por volta da mesma época, Roger Penrose em Oxford provou um resultado impressionante:  de acordo com a relatividade geral, sob amplas circunstâncias, espaço e tempo colapsariam em si mesmos formando uma singularidade. Se a gravidade é a curvatura do espaço-tempo, uma singularidade é um momento no tempo quando essa curvatura se torna infinitamente grande. Esse teorema mostrou que singularidades não eram apenas curiosidades, elas são uma característica importante da relatividade geral.       

O resultado de Penrose se aplicava a buracos negros  regiões de espaço-tempo cujo campo gravitacional é tão forte que nem a luz não consegue escapar. Dentro de um buraco negro, a singularidade se esconde no futuro. Hawking pegou a ideia de Penrose e virou ao contrário, mirando no universo passado. Ele mostrou que, sob circunstâncias gerais parecidas, o espaço deve ter surgido a partir de uma singularidade: o Big Bang. Cosmólogos modernos falam (de forma confusa) tanto sobre o "modelo" de Big Bang, que é uma teoria muito bem sucedida que descreve a evolução de um universo em expansão ao longo de bilhões de anos, quanto sobre a "singularidade" do Big Bang, o que ainda não afirmamos entender.

Hawking então mudou seu foco para buracos negros. Um outro resultado interessante de Penrose demonstrou que é possível extrair energia de um buraco negro em rotação, essencialmente sangrando seu spin até que não esteja mais em rotação. Hawking foi capaz de demonstrar que, embora é possível extrair energia, a área do horizonte de eventos circundante ao buraco o negro sempre aumentará em qualquer processo físico. Esse "teorema de área" foi importante por si só, mas foi também evocativo de uma área completamente separada da física: termodinâmica, o estudo do calor.

A termodinâmica obedece um conjunto de leis famosas. Por exemplo, a primeira lei diz que a energia é preservada, enquanto a segunda lei diz que a entropia  uma medida do nível de desordem do universo  nunca diminui para um sistema isolado. Trabalhando com James Bardeen e Brandon Carter, Hawking propôs um conjunto de leis para a "mecânica de buraco negro", em uma analogia similar com a termodinâmica. Assim como na termodinâmica, a primeira lei da mecânica de buraco negro garante que a energia é preservada. A segunda lei é o teorema de área de Hawking, que a área do horizonte de eventos nunca diminui. Em um outras palavras, a área do horizonte de eventos é análoga à entropia de um sistema termodinâmico - ambos tendem a aumentar com o tempo.

Evaporação do Buraco Negro            

Hawking e seus colaboradores estavam orgulhosos das leis da mecânica de buraco negro, mas eles vinham essas leis simplesmente como uma analogia formal, não uma conexão literal entre gravidade e termodinâmica. Em 1972, um estudante de pós-graduação na Universidade da Princeton chamado Jacob Bekenstein sugeriu que tinha algo a mais além de uma analogia. Bekenstein, usando como base alguns engenhosos experimentos de pensamento, sugeriu que o comportamento de buracos negros não apenas parecia com termodinâmica, de fato é termodinâmica. Em particular, buracos negros têm entropia.

Como muitas ideias agressivas, essa ideia foi recepcionada com resistência por parte dos especialistas - e nesse momento,  Stephen Hawking era o especialista do mundo em buracos negros. Hawking estava cético e por boas razões. Se a mecânica de buraco negro é apenas uma forma de termodinâmica, isso quer dizer que buracos negros possuem temperatura. E objetos que possuem temperatura emitem radiação - a famosa "radiação do corpo negro" que desempenhou um papel central no desenvolvimento da mecânica quântica. Então, se Bekenstein estivesse certo, isso implicaria que buracos negros não são realmente negros (embora o próprio Bekenstein não foi tão longe assim).

Para endereçar esse problema seriamente, é preciso olhar além da relatividade geral, uma vez que a teoria de Einstein é puramente "clássica" - ela não incorpora os insights da mecânica quântica. Hawking sabia que os físicos Russos Alexander Starobinsky e Yakov Zel'dovich tinham investigado os efeitos quânticos na vizinhança de buracos negros e tinham previsto um fenômeno chamado "superradiância". Assim como Penrose tinha demonstrado que é possível extrair energia de um buraco negro em rotação, Starobinsky e Zel'dovich mostraram que um buraco negro em rotação pode emitir radiação espontaneamente via mecânica quântica. Hawking não era um especialista nas técnicas da teoria quântica de campos, que na época eram o território dos físico de partículas e não de relativistas gerais. Mas ele era um estudioso rápido e se lançou na difícil tarefa de entender os aspectos quânticos de buracos negros, para que ele pudesse encontrar o erro de Bekenstein.

Em vez disso, ele se surpreendeu, e no processo virou a física teórica de cabeça para baixo. O que eventualmente Hawking descobriu era que Bekenstein estava certo — buracos negros têm entropia —e que as implicações extraordinárias dessa ideia eram verdade — buracos negros não são completamente negros. Nos referimos à "entropia de Bekenstein-Hawking" de buracos negros, que emitem "radiação Hawking" nas suas "temperaturas Hawking".

Há uma maneira boa e informal de entender a radiação Hawking. A mecânica quântica diz (entre outras coisas) que não é possível atribuir um estado clássico definitivo para um sistema; há sempre uma incerteza intrínseca naquilo que veremos ao olharmos para o sistema. Isso é verdade até para o espaço vazio - quando se olha perto o suficiente, aquilo que pensamos ser espaço vazio está repleto de "partículas virtuais"  constantemente vindo a existir e deixando de existir.  Hawking demonstrou que, na vizinha de um buraco negro, um par de partículas virtuais podem se separar, uma caindo no buraco negro e a outra escapando como radiação. Surpreendentemente, a partícula em queda tem uma entropia negativa se medida por um observador externo ao buraco negro. O resultado é que a radiação leva gradualmente a massa do buraco negro - o buraco negro evapora.

O resultado de Hawking tinha implicações óbvias e profundas relacionadas à maneira como pensamos sobre buracos negros. Em vez de ser um ponto final cósmico, onde matéria e energia desaparecem para sempre, eles são objetos dinâmicos que eventualmente vão evaporar completamente. Mas mais importante para a física teórica, essa descoberta lançou uma questão que ainda não sabemos a resposta: quando matéria cai dentro de um buraco negro e o buraco negro evapora, para onde vai a informação?

Se queimarmos uma enciclopédia, podemos pensar que a informação contida na enciclopédia é perdida para sempre. Mas de acordo com a mecânica quântica, a informação não está nada perdida; se pudéssemos capturar cada fragmento de luz e cinza que saíram do fogo, em teoria é possível reconstruir tudo que foi queimado, até o conteúdo impresso nas páginas do livro. Mas buracos negros, se o resultado de Hawking for considerado ao pé da letra, parecem destruir a informação, pelo menos da perspectiva do mundo externo. Esse impasse é o "enigma da perda de informação de buracos negros" e tem chateado os físicos por décadas.

Nos últimos anos, o progresso no entendimento da gravidade quântica (apenas no nível de experimento de pensamento) tem convencido mais pessoas de que a informação é realmente preservada. Em 1997, Hawking fez uma aposta com os físicos Americanos Kip Thorne e John Preskill; Hawking e Thorne disseram que a informação é destruída, Preskill disse que a informação era preservada de alguma forma. Em 2007, Hawking admitiu que perdeu a aposta, dizendo que buracos negros não destroem a informação. Entretanto, Thorne ainda não concedeu a sua parte da aposta e o próprio Preskill pensa que a concessão de Hawking foi prematura. A radiação e entropia de buracos negros continuam sendo princípios que guiam a nossa busca por um melhor entendimento da gravidade quântica. 

Cosmologia Quântica

O trabalho de Hawking na radiação de buracos negros se baseava em uma combinação de ideias quânticas e clássicas. No seu modelo, o buraco negro em si era tratado classicamente, de acordo com as regras da relatividade geral; enquanto isso, as partículas virtuais próximas ao buraco negro eram tratadas usando as regras da mecânica quântica. O objetivo final de muitos físicos é construir uma verdadeira teoria da gravidade quântica, na qual o espaço-tempo seria parte de um sistema quântico.

Se há um lugar onde a mecânica quântica e a gravidade têm um papel central, é na origem do universo. E foi nessa questão, não surpreendente, que Hawking dedicou a parte final da sua carreira. Ao fazer isso, ele estabeleceu a agenda para o projeto ambicioso dos físicos de entender de onde o nosso universo veio.

Na mecânica quântica, um sistema não tem uma posição ou velocidade; seu estado é descrito por uma "função de onda", que nos diz a probabilidade de mensurarmos uma posição ou velocidade específica ao observamos o sistema. Em 1983, Hawking e James Hartle publicaram um artigo entitulado simplesmente "A Função de Onda do Universo". Eles propuseram um procedimento simples onde - em principio! - o estado de todo o universo poderia ser calculado. Não sabemos se a função de onda Hartle-Hawking é realmente a correta descrição do universo. De fato, porque ainda não temos uma completa teoria quântica da gravidade, não sabemos nem se o procedimento faz sentido. Mas o artigo deles mostrou que podemos falar do início do universo de uma forma científica.

Estudar a origem do universo oferece a expectativa de conectar a gravidade quântica a características observáveis do universo. Cosmólogos acreditam que pequenas variações na densidade de matéria originada de tempos bem iniciais gradualmente cresceram na distribuição de estrelas e galáxias que observamos hoje. Uma teoria completa da origem do universo pode ser capaz de prever essas variações e executar esse programa é a maior ocupação de físicos atualmente. Hawking fez uma série de contribuições a esse programa, a partir da sua função de onda do universo e no contexto do modelo do "universo inflacionário" proposto por Alan Guth.

Apenas falar sobre a origem do universo é um passo provocante. Isso lança a expectativa de que ciência pode ser capaz de prover uma completa e auto-contida descrição da realidade - uma expectativa que vai além da ciência, até os reinos da filosofia e teologia. Hawking, sempre provocante, nunca se esquivou dessas implicações. Ele gostava de lembrar de uma conferência de cosmologia organizada pelo Vaticano, na qual o Papa João Paulo II supostamente disse aos cientistas para não investigar a origem do universo, "porque esse foi o momento da criação e então o trabalho de Deus". Repreensões como essa não frearam Hawking; ele viveu sua vida em uma incansável busca nas questões mais fundamentais que a ciência pode atacar.       
        

O Presente Mais Profundo de Hawking à Física

por Sean Carroll
fonte: NY Times
tradução: Felipe Nogueira

Stephen Hawking se foi, mas ele deixou algo incrivelmente precioso: um enigma intricado e frustrante, e que os cientistas lutarão para solucionar nos próximos anos. O enigma do Dr. Hawking é uma peça importante da talvez maior pergunta na física atualmente: como podemos conciliar a gravidade com a mecânica quântica?

Os anos iniciais do século XX presenciaram duas incríveis revoluções científicas. Uma foi a teoria da relatividade. Liderados por Albert Einstein, os físicos descartaram o espaço e tempo absolutos de Isaac Newton e os substituíram por um contínuo e unificado espaço-tempo quadridimensional. São as dobras e ondulações do espaço-tempo, descobriu Einstein, que dão origem ao que experimentamos como a força da gravidade.

A outra revolução — até mais profunda que relatividade — foi a mecânica quântica. Quando examinamos o comportamento de partículas sub-atômicas, descobrimos que elas não podem ser descritas com a linguagem precisa da física clássica. Em vez disso, as partículas sub-atômicas aparecem como ondas de probabilidades e o melhor que podemos fazer é calcular a chance de uma específica medição retornar um ou outro resultado.

Gradualmente, tudo que sabemos sobre o mundo físico foi sendo colocado dentro da mecânica quântica. O comportamento da matéria, eletricidade e magnetismo, e as forças sub-atômicas funcionando dentro do núcleo de átomos — tudo encaixou elegantemente no paradigma quântico.

A única exceção é a gravidade. Por razões técnicas e conceituais, a visão de Einstein do espaço-tempo curvado vem resistido teimosamente à conciliação com as regras da mecânica quântica. A busca por uma teoria que unifique os dois paradigmas  uma teoria da "gravidade quântica" — é talvez o projeto mais ambicioso na física teórica moderna.

"Teórica" é uma palavra importante nesse contexto, porque é praticamente impossível fazer experimentos que diretamente revelem qualquer coisa sobre a gravidade quântica. A mecânica quântica se revela na escala sub-atômica, enquanto a gravidade se torna perceptível apenas quando temos massas astronomicamente grandes. Não há situação facilmente acessível onde as duas são importantes ao mesmo tempo.

É aqui que Stephen Hawking aparece. Quando experimentos reais são elusivos, nos voltamos para experimentos de pensamento. Na década de 1970, Dr. Hawking descreveu a mãe de todos os experimentos de pensamento, um que mantem os físicos acordados a noite.

O experimento de pensamento de Hawking começa com um buraco negro. De acordo com a relatividade de Einstein, um buraco negro é uma região de espaço-tempo onde a gravidade se tornou tão forte que nada consegue escapar. Mas o Dr. Hawking se perguntou como que partículas quânticas se comportam na vizinha de tal objeto. Afinal, a mecânica quântica é uma teoria de probabilidades; talvez o impossível de acordo com Einstein seja possível no mundo quântico.

E, de fato, é possível. Os cálculos do Dr. Hawking relevaram, como ele colocou de forma maliciosa, que "buracos negros não são tão negros". Eles na realidade emitem um contínuo feixe de partículas, conhecidas como radiação Hawking. Essas partículas carregam fragmentos da massa do buraco negro, que então evaporará completamente, um fenômeno conhecido como evaporação Hawking. 

Então, este é o experimento de pensamento: jogue um livro em um buraco negro. O livro carrega informação. Talvez a informação seja sobre física ou a trama de um romance — pode ser qualquer tipo de informação. Mas até onde sabemos, a radiação Hawking que sai do buraco negro é a mesma independente do que entrou no buraco negro. A informação é aparentemente perdida — para aonde que foi?

Então, temos o "enigma da perda de informação em buracos negros", talvez o presente mais profundo do Dr. Hawking para a física. Em questão está o destino do princípio da conservação de informação. Sem a relatividade geral, a mecânica quântica prevê que a informação é preservada; de forma similar, sem a mecânica quântica, a relatividade geral prevê que a informação é preservada, mesmo que alguma parte fique escondida no buraco negro. É, então, estranho que a junção das duas teorias acarrete no desaparecimento da informação.

Por um longo período, Dr. Hawking argumentou, contra a intuição de outros líderes na física, que a informação é simplesmente apagada do buraco negro e que teríamos que aprender a lidar com isso. Mas eventualmente ele mudou de ideia (algo que ele sempre fazia com vontade), concedendo em 2004 que a informação está provavelmente retida na radiação que sai do buraco negro. A questão, no entanto, está muito longe de estar resolvida.

O experimento de pensamento da perda da informação do Dr. Hawking é maior pista que temos de como a gravidade quântica deve operar. Mesmo não tendo uma teoria completa ainda, sabemos muito sobre a mecânica quântica e sabemos muito sobre a gravidade. Isso é suficiente para nos convencer que radiação Hawking é real, mesmo que nunca tenha sido observada diretamente. Isso significa que qualquer teoria da gravidade quântica terá de explicar de alguma forma como a informação escapa do buraco negro ou como é destruída.

A radiação do buraco negro e o enigma da perda da informação certamente não são as únicas contribuições do Dr. Hawking à física moderna. Voltando ao alicerce mais firme da relatividade clássica, ele provou uma série de teoremas fundamentais sobre o comportamento de buracos negros e expansão do universo. De forma mais especulativa, Dr. Hawking e o físico James Hartle propuseram uma candidata para a "função de onda do universo", o estado quântico descrevendo toda a realidade. No meio termo, Dr. Hawking fez contribuições para perguntas profundas como a origem da estrutura do universo e se é possível construir uma máquina do tempo (Não é, ele argumentou).

Ele fez isso tudo em adição, é claro, ao seu alcance a uma audiência popular compartilhando com ela sua paixão pela física e os mistérios do universo. Dr. Hawking foi um cientista extraordinariamente influente, assim como um ser humano corajoso e determinado. Eles nos deixou muita coisa para pensar.              
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Sean Carroll (@seancarroll) é um físico teórico no Instituto de Tecnologia da Califórnia e autor do livro The Big Picture: On the Origins of Life, Meaning, and the Universe Itself.       

quarta-feira, 7 de março de 2018

Os Cães Ficaram Mais Espertos Através da Domesticação? Entrevista com Dr. Brian Hare










por Felipe Nogueira

Dr. Brian Hare é um Professor Associado do Departamento de Antropologia Evolutiva na Universidade de Duke e no Centro de Neurociência Cognitiva. Hare é pioneiro e especialista na área de psicologia dos cães. Junto com Vanessa Woods, Brian Hare escreveu sobre a revolução no estudo da cognição canina no fascinante livro Seu Cachorro É Um Gênio! Como os Cães São Mais Inteligentes do Que Se Pensa. Na palavra dos autores, o livro é “como a ciência cognitiva passou a entender a genialidade dos cães através de jogos experimentais, sem usar outra tecnologia além de brinquedos, vasilhames, bolas, e tudo o mais que houvesse em uma garagem”.
   
Hare e outros pesquisadores mostraram diversas vezes que os cachorros são bons em entender as intenções de comunicação dos humanos. Com a ajuda de um brilhante experimento com raposas iniciado por Dmitri Belyaev em 1950 que continua até os dias de hoje, a pesquisa de Hare descobriu o que permitiu aos cães desenvolverem essa habilidade impressionante: domesticação. Depois de 45 gerações, as raposas de Belyaev no grupo experimental tinham orelhas caídas, rabos enrolados e eram muito melhores na leitura dos gestos humanos do que as raposas no grupo controle. A questão é que Belyaev não selecionou pelas melhores raposas em ler os gestos humanos; em vez disso, ele selecionou as raposas menos medrosas e mais amigas em relação aos humanos. Como Hare e Woods escreveram no livro: “A domesticação, ao selecionar para procriação as raposas mais amigáveis, provocara uma evolução cognitiva”. 

Para entender ainda mais as limitações e flexibilidades da cognição canina, pesquisadores têm criado laboratórios dedicados, como o Centro de Cognição Canina de Duke, criado por Hare.

Dr. Brian Hare
Nogueira: No seu livro, você fala da genialidade dos cães. O que você quer dizer com ser um gênio?
Hare: Se fossemos falar de QI alto, ou quem seria recrutado pela NASA, teríamos um livro bem pequeno. Na minha opinião, a grande descoberta na revolução da cognição é que a cognição não é um traço dimensional único. Na realidade, é todo um conjunto de habilidades que podem variar de forma independente e nem sabemos quantas existem. Por exemplo, uma pessoa pode ser ótima em matemática, mas uma péssima comunicadora. Em relação às espécies, cada uma evoluiu para resolver um conjunto de problemas que as ajudaram a sobreviver e reproduzir em seus ambientes particulares; os cães não são diferentes. O meu livro Seu Cachorro É Um Gênio tenta explicar como uma espécie que parece ser bem comum é tão bem sucedida. Os cachorros são bem sucedidos de uma perspectiva evolutiva porque, em todos os lugares que há pessoas, há cães. É o mamífero mais bem sucedido – depois dos humanos e talvez vacas. É isso que o livro explora: os cães possuem algum tipo de genialidade psicológica ou cognitiva? Sim, eles mostram um nível incomum de sofisticação para resolução de problemas.

Nogueira: Conte como começou a pesquisar a cognição dos cachorros.
Hare: O psicologista do desenvolvimento Michael Tomasello, meu orientador de pesquisa na época, estava me explicando como a comunicação gestual é muito importante no desenvolvimento humano. Ele pensava não ser apenas crucial para evolução humana, mas algo único dos humanos. A teoria dele era que as crianças desenvolveram a habilidade de usar os gestos humanos e entender intenções de comunicação. Então, eu disse para ele que meu cachorro também conseguia fazer isso. Foi quando eu aprendi o que é a ciência, porque mesmo sendo uma ideia importante de como os humanos evoluíram, Tomasello ficou curioso. Ele me disse: “vou te ajudar a achar uma forma de provar que estou errado”. Isso é incrível! Quando descobrimos que ele estava errado sobre os cachorros, ele ficou empolgado, nos dizendo para fazer mais experimentos. As pessoas acham que a ciência envolve pessoas em jalecos de laboratórios criando ideias geniais, mas na realidade é uma maneira de refutar ideias.

Nogueira: Como foi o primeiro experimento com cães?
Hare: Usamos uma técnica poderosa, mas muito simples: tínhamos dois recipientes e escondemos comida em um deles. Então apontamos para onde escondemos, tentando ajudar o cachorro1. Grandes primatas são péssimos nessa tarefa. Eles não mostram muita flexibilidade cognitiva, já que eles precisam aprender o gesto. E, todas as vezes que você usa um novo gesto, eles precisam aprender de novo. Em comparação, crianças por volta de um ano de idade entendem gestos que eles nunca viram antes, mostrando um grau de flexibilidade não observado nos grandes primatas. Fizemos com os cães a mesma série de experimentos que foi realizada com primatas e crianças. A grande surpresa foi que cães são mais parecidos com as crianças.
Esse foi um experimento controlado: os cachorros não estavam usando olfato, nem reagindo ao movimento. Na ciência, há dois passos. Primeiro, é preciso demonstrar um fenômeno. Seja ondas gravitacionais ou cachorros seguindo gestos, você precisa demonstrar o fenômeno. Então, tenta-se explicar. Frequentemente, as pessoas estão preocupadas em explicar antes mesmo de demonstrar que o fenômeno existe. Após demonstrarmos que os cães estavam seguindo o gesto de apontar, nós queríamos saber se eles apenas sentiram o cheiro da comida escondida. Descobrimos que lobos, raposas e cães preferem usar seus olhos. Quando eles não conseguem a informação que precisam pela visão, aí que eles usam olfato. Nesses experimentos, descobrimos que os cães priorizam as informações da visão e memória em comparação com o olfato. 

Nogueira: Um dos experimentos fascinantes mencionado no livro usa uma barreira opaca. Poderia elaborar?
Hare: Esse é o trabalho da Juliane Kaminsky, Michael Tomasello e Josep Call2. Eles colocaram uma bola atrás de cada uma de duas barreiras, uma opaca e uma transparente. O cachorro pode ver as duas bolas. Na condição experimental, um humano está no lado oposto das barreiras e pede para o cachorro buscar a bola. O surpreendente é que os cachorros não pegaram a bola da barreira opaca, que o humano não consegue ver através; eles favoreceram a bola da barreira transparente. Na condição de controle, onde humano e o cão estão no mesmo lado, vendo a mesma coisa, os cães escolhem a bola de forma aleatória. Esse experimento sugere que os cachorros sabem o que os humanos conseguem e não conseguem ver.
Nogueira: Quais são as possíveis explicações para os cães serem tão bom em ler os gestos humanos?
Hare: Um nível de explicação é que os cachorros aprenderam lentamente, já que eles viram esses gestos muitas vezes. Essa ideia pode ser testada usando um gesto que os cães nunca viram antes, como apontar com o pé. Pode se usar um gesto doido, como colocar um objeto em cima de um recipiente onde está a comida escondida. Crianças humanas e cachorros seguem esses gestos, mas chimpanzés não. Com isso, essa hipótese de aprender devagar foi descartada. A parte difícil é como saber se os cães realmente possuem uma estratégia flexível sofisticada, uma teoria da mente, o que significa que eles estão pensando no pensamento de outros indivíduos? A melhor evidência sobre animais que possuem teoria da mente vem dos grandes primatas e talvez pássaros, como corvos. Em relação aos cachorros, na realidade, não temos o experimento conclusivo para eliminar explicações alternativas. Então, não temos evidências extraordinárias que os cachorros possuem teoria da mente. Por exemplo, o experimento da barreira opaca, onde o cachorro sabe o que pessoa consegue e não consegue ver, não foi replicado. Quando estamos estudando algo como a teoria da mente, buscamos múltiplos experimentos onde o animal mostra o mesmo tipo de habilidade. Temos isso com grandes primatas, mas não temos isso ainda com os cachorros.

Nogueira: De onde vêm as habilidades impressionantes dos cachorros?
Hare: Testamos várias hipóteses. A primeira era que como os cachorros são parentes dos lobos, que são inteligentes e talvez fossem bons em ler os gestos humanos. A outra foi experiência: eles interagiram conosco e aprenderam devagar. Finalmente, consideramos se foi algo ocorrido durante a domesticação. E a evidência favorece a domesticação: a seleção dos mais amigáveis com humanos foi o que permitiu aos cachorros serem mais habilidosos na leitura e na utilização dos humanos para resolver problemas. Isso foi uma surpresa: por que ser selecionado por ser amigável torna alguém mais inteligente?   

Nogueira: Como que a pesquisa de Belyaev com as raposas ajudaram a responder essa pergunta?
Hare: Esse brilhante experimento foi conduzido por um grupo de cientistas na Sibéria liderado por Dmitri Belyaev. Eles tinham dois grupos de raposas separados: o grupo experimental e o grupo controle. O grupo controle foi procriado de forma aleatória. No grupo experimental, Belyaev selecionou pelas raposas mais receptivas ou aquelas mais gostavam da interação com as pessoas. Em outras palavras, Belyav selecionou pelas raposas mais amigáveis e deixou que procriassem. Depois de muitas gerações, o grupo experimental de raposas mostrou uma alta frequência de características que Belyaev não selecionou, como orelhas caídas, caudas enroladas e pelagem multicolorida. As raposas também tinham mudanças psicológicas relacionadas à redução da agressão e aumento da atitude amigável. O experimento foi importante para nossa pesquisa porque eles tinham uma população que havia sido domesticada experimentalmente. Era uma grande oportunidade para testar a ideia de que a domesticação realmente é a seleção contra a agressão e pelos mais amigáveis com as pessoas. Faz sentido: como você pode ter um animal domesticado, se ele apenas quer te atacar ou é tão medroso que não consegue chegar perto de você? As raposas também nos levaram às perguntas sobre a psicologia: Essa habilidade impressionante de ler os gestos humanos e de usar os humanos como ferramentas sociais é também um produto da seleção pelos mais amigáveis? A resposta é “sim”: as raposas domesticadas agiram como cachorros na questão da habilidade de ler os gestos humanos, enquanto as raposas do grupo controle se comportaram mais como lobos.   

Nogueira: No seu livro, você menciona que “sem experimento, estaríamos escorregando da ciência para o campo da ficção”. Poderia elaborar por que precisamos de experimentos?
Hare: Publicamos um artigo na Science eliminando as duas primeiras hipóteses4. A primeira era que as habilidades impressionantes dos cachorros de interpretar os gestos humanos evoluíram nos lobos e foram herdadas. Segunda: muita experiência deu essas habilidades aos cachorros. Não encontramos evidências para essas hipóteses. Então, favorecemos a hipótese da domesticação. Não tínhamos evidência para ela, só tínhamos evidência contra as duas outras hipóteses. Se Belyaev não tivesse feito seu experimento de domesticação, estaríamos empacados nesse ponto. O trabalho de Belyaev estabeleceu a possibilidade de testar se a domesticação tornou os cachorros capazes de ler os gestos humanos. Fizemos um experimento com as raposas e ficamos surpresos: mesmo elas não sendo selecionadas para serem mais inteligentes ou melhores no uso dos gestos humanos, elas eram como um resultado de serem selecionadas por serem amigáveis. Tínhamos evidência direta que foi a domesticação5. As pessoas pensam que domesticamos os cachorros e tornamo-los mais inteligentes, mas não significa que é verdade.  

Nogueira: Se isso não é verdade, o que provavelmente aconteceu?
Hare: As pessoas pensam que criamos os cães como a nossa imagem. A melhor evidência sugere que os animais tinham uma vantagem se eles fossem amigáveis com pessoas; eles iriam reproduzir mais. Eu estava comendo em uma área externa de um restaurante e tinha pardais roubando comida a poucos centímetros de mim. Esses pardais estão comendo bastante, estão bem alimentados e saudáveis. Isso porque eles não têm medo das pessoas. Eu acho que algo similar a isso ocorreu com os cachorros. Em algum ponto da evolução humana, os humanos criaram uma nova fonte de comida. Se um animal fosse amigo o suficiente e não tivesse medo da população humana, ele seria um grande vencedor evolutivo. Então, uma população de lobos nos escolheu, não fomos nós que os escolhemos. Uma vez que os caçadores-coletores competiam com lobos, não fazia sentido trazer um animal como um lobo perto das suas crianças. Os lobos perceberam, assim como os pássaros do restaurante, que os restos ao redor dos acampamentos humanos são um recurso ótimo. Depois de algumas poucas gerações, eles mostrariam mudanças morfológicas, como aquelas que vimos nas raposas, possibilitando as pessoas diferenciar entre esses lobos e aqueles lobos que competíamos. Essa teria sido uma grande vantagem seletiva.

Nogueira: Como a evolução está relacionada com essas mudanças?
Hare: A seleção contra a agressão e por ser amigável com as pessoas criou várias mudanças além daquelas na morfologia e psicologia. Uma vez que existiam essas diferenças, a seleção pode agir nelas também. A questão é que essas novas mudanças não foram criadas; os humanos não pensaram em criar cães com orelhas caídas, por exemplo. Alguns indivíduos tinham orelhas caídas devido à seleção contra a agressividade. Com isso, as pessoas poderiam procriar esses indivíduos para criar mais orelhas caídas. Em outras palavras, tiramos vantagem da variância criada pela seleção contra a agressividade.
A evolução não é nada diferente da gravidade. Se eu soltar uma bola, não posso impedir a sua queda, é imparável. A evolução também é imparável. O fato de não conseguimos ver a evolução não significa que não esteja ocorrendo o tempo todo. Outro exemplo é um cervo que vem comer no quintal da minha casa. Normalmente, cervos próximos aos humanos não é uma boa ideia. Se alguém vive a alguns quilômetros da minha casa, um cervo no seu quintal rapidamente vai virar jantar. Mas, onde eu moro no subúrbio, todo mundo pensa que os cervos são fofos e adoráveis. Onde eu moro, há uma maior proporção de cervos com diferentes cores de pelos, há mais cervos brancos e albinos. As pesquisas mostram que os cervos que estão invadindo áreas urbanas são maiores, mais sociais e possuem mais descendentes do que aqueles vivendo distantes dos humanos. 

Nogueira: Esse processo de domesticação que ocorreu com os cães provavelmente ocorreu com outros animais, o que chamamos de convergência da evolução. O que encontramos, por exemplo, quando comparamos chimpanzés e bonobos em relação à agressividade e atitude com os estranhos?
Hare: Os bonobos serviram como um caso de teste para a hipótese de que foi a seleção natural, e não a seleção artificial, que causou a domesticação. Chamamos de autodomesticaçao: as espécies através da seleção natural interagindo com o ambiente terminaram como animais domesticados. Muitas mudanças entre lobos e cachorros são encontradas entre chimpanzés e bonobos. Os chimpanzés são como os lobos da família dos primatas. Se estivermos falando de características morfológicas e comportamentais, os bonobos são como os cães dos primatas. 
Nogueira: Nesta revista Skeptic, defendemos o pensamento baseado em evidência. Como você comunicou com o público, qual você acha que é a melhor abordagem para trazer as pessoas do pensamento baseado na fé para o pensamento baseado em evidências, para, por exemplo, aumentar a aceitação da evolução?
Hare: Nos Estados Unidos, as pessoas pensam que os Cristãos têm um problema com a evolução, mas a Igreja Católica diz que a evolução é consistente com a doutrina Católica. As pessoas adoram a formar grupos contrários: a ciência é algo que outras pessoas fazem. A resposta típica dessa briga entre grupos é que se alguém é religioso e de fé, essa pessoa não pode acreditar na ciência porque a ciência é anti-religião. As pessoas usam estratégias para atacar a ciência, ou pensamento evolutivo, como se fossem o grupo externo. Como alguém que estuda evolução, a primeira coisa a ser notada é que humanos evoluíram para enxergar grupos distintos em todos os lugares. Se dissermos algo do tipo “você é religioso e você não é como eu sou”, acabou a conversa. Como um comunicador da ciência, eu vou dizer que a Igreja Católica não tem problema com a minha pesquisa com o objetivo de desligar essa resposta da diferenciação de grupos. O objetivo do meu livro Seu Cachorro É Um Gênio é empolgar pessoas que nunca leram sobre evolução e ciência cognitiva para lerem, porque elas se importam com cachorros. Darwin iniciou A Origem das Espécies intencionalmente com um capítulo sobre domesticação, porque ele sabia que as pessoas eram familiarizadas e não se sentiam ameaçadas por esse tema. Acho que temos de fazer o mesmo.
        
Nogueira: Obrigado por essa ótima entrevista e continue com sua pesquisa fascinante! 


Referências
1.    Hare B, Tomasello M. 2005. Human-like social skills in dogs? Trends in Cognitive Sciences 9: 439–444. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16061417.  
2.    Kaminski J, Bräuer J, Call J, Tomasello M. 2009. Domestic dogs are sensitive to a human’s perspective. Behaviour 146: 979-998 https://doglab.shh.mpg.de/ pdf/Kaminski_et_al_2009a_dogs_sensitive_humans _perspective.pdf.
3.    Hare, B Hare, B., Homo sapiens Evolved via Selection for Prosociality. Annu Rev Psychol. 68:155-186: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27732802
4.    Hare B., M. Brown, C. Williamson, and M. Tomasello. 2002. “The domestication of social cognition in dogs.” Science. 298: 1634-6.
5.    Hare B., et al. 2005. “Social cognitive evolution in captive foxes is a correlated by-product of experimental domestication.” Current Biology. 15: 226-30.