publicado na Skeptical Inquirer Volume 43.1 (Jan/Fev 2019)
O rastreamento do câncer busca pela doença antes de seus sintomas aparecem. As mensagens encorajando o rastreamento dos cânceres de próstata e mama contêm estatísticas enganadoras e também não discutem o principal dano do rastreamento: ser diagnosticado e tratado desnecessariamente.
O
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utubro Rosa e Novembro
Azul são campanhas de conscientização dos cânceres de mama e próstata,
respectivamente. No Brasil e em outros países, a população é incentivada a
realizar exames como o PSA para o câncer de próstata e mamografia para o câncer
de mama.
A principal ideia é o
rastreamento (screening): fazer exames em pessoas assintomáticas, com objetivo de detectar a doença antes dos
sintomas aparecerem e, com isso, aumentar as chances de cura e até oferecer um
tratamento menos agressivo. Um bom exemplo é o rastreamento do câncer de colo
de útero, onde a incidência de casos avançados diminuiu depois que o exame
Papanicolau foi iniciado (Adegoke et al. 2012). Entretanto, estudos que
analisam a eficácia do rastreamento dos cânceres de próstata e mama mostram que
a realidade não é tão simples como divulgada nessas campanhas.
Em Maio de 2018, a Força-Tarefa
de Serviços Preventivos dos Estados Unidos (USPSTF) revisou os estudos de
rastreamento do câncer de próstata com PSA (Fenton et al. 2018). Apenas dois
estudos randomizados controlados tiveram qualidade suficiente para avaliar o
impacto do PSA na mortalidade. Um deles chamado de PLCO1 não mostrou
diferença na mortalidade. O segundo estudo, chamado ERSPC2, mostrou
que o rastreamento reduziu a mortalidade do câncer de próstata em homens entre
55-69 anos. Mas ainda assim não é tão simples. Para evitar uma morte por câncer
de próstata e três casos de câncer de próstata com metástase, 1000 homens entre
55-69 anos precisaram ser rastreados a cada quatros anos durante 13 anos. Dos
1000, 27 homens receberam tratamento — cirurgia para remoção da próstata e/ou
radiação. Mais importante, a maioria dos homens tratados, 24 pacientes, recebeu
tratamento agressivo sem nenhum benefício, apenas danos causados pelo próprio
tratamento. Independente de terem feito rastreamento, cinco homens morreram de
câncer de próstata. Veja a Tabela 1 para as estimativas completas.
Uma análise criteriosa do rastreamento tem de
considerar os danos causados pelo tratamento. A revisão da USPSTF encontrou
que, daqueles que fazem cirurgia para remoção completa da próstata, um em cinco
homens desenvolve incontinência urinária e dois a cada três homens têm
impotência. Mais da metade daqueles que recebem radiação desenvolve impotência
e um em seis desenvolve sintomas intestinais, incluindo urgência e
incontinência fecal (Fenton et al. 2018).
Tabela 1 – Estimativas da USPSTF dos benefícios e danos do rastreamento do câncer de próstata no estudo ERSPC (Fenton et al. 2018). |
A visão geral de que o rastreamento do câncer de próstata pode fazer mais mal do que bem é longe de ser novidade. Uma meta-análise de 2013 da Cochrane (Ilic et al. 2013) de cinco estudos não mostrou redução na mortalidade. Em 2012, a USPSTF tinha recomendado contra o rastreamento independente da idade. Atualmente, a USPSTF conclui que os benefícios e malefícios do rastreamento para homens com 55-69 anos são balanceados, recomendando uma decisão individual após uma consideração cuidadosa dos potenciais benefícios e danos. Para homens com 70 anos ou mais, a USPSTF recomenda contra o rastreamento. Veja o link para a Figura de apoio à decisão da USPSTF.
Em relação ao câncer de mama, a evidência parece um pouco mais favorável ao rastreamento, mas não de forma tão clara como as mensagens das campanhas sugerem. Um artigo publicado no JAMA em 2018 (Keating e Pace 2018) estimou que 10 em 10 mil mulheres nos seus cinquenta anos rastreadas anualmente durante dez anos evitariam morte por câncer de mama. Em contrapartida, 940 mulheres seriam submetidas a biópsias desnecessárias e 44 seriam tratadas desnecessariamente com cirurgia, radiação, quimioterapia, ou terapia hormonal. Independente do rastreamento, 62 mulheres ainda morreriam de câncer de mama. Como o tratamento para câncer de mama melhorou muito desde que os estudos foram conduzidos, o benefício do rastreamento pode ainda ser menor do que o reportado (Keating e Pace 2018). Para oferecer benefícios e reduzir os danos, a USPSTF recomenda mamografia para mulheres entre 50-74 anos apenas a cada dois anos e recomenda contra ensinar o auto-exame da mama*.
Estudos de autópsia da
próstata em homens que morreram por outras causas também mostram um grande
“reservatório” de câncer. Em homens autopsiados entre 60-79 anos, a incidência
de câncer de próstata variou entre 14 e 77%. Surpreendentemente, câncer de
próstata foi encontrado até em homens autopsiados em seus vinte anos de idade,
com uma incidência de 8-11% (Sandhu e Adriole 2012).
O que esses dados estão
descrevendo é chamado sobrediagnóstico
(Welch e Black 2010; Carter e Barrat 2017). O rastreamento detecta principalmente
casos de câncer não letais ou indolentes — se não fosse pelo rastreamento,
morreríamos com esses cânceres sem nem termos conhecimento que tínhamos a
doença.
Sobrediagnóstico não é
um resultado falso-positivo, onde após um teste positivo a avaliação
subsequente não detecta sinais de câncer. No sobrediagnóstico, a lesão
detectada de fato preenche os critérios de diagnóstico para câncer, mas não
teria causado sintomas (por exemplo, não teria sido diagnosticado na ausência
de rastreamento) (Welch e Black 2010; Carter e Barrat 2017).
O sobrediagnóstico e sua consequência são os principais danos do rastreamento. Uma vez que no momento do diagnóstico é impossível diferenciar lesões indolentes das letais, quase todos os casos são tratados (Welch e Black 2010). Estimativas sugerem que entre 20 e 60% dos cânceres de próstata detectados por rastreamento foram sobrediagnosticados (Fenton et al. 2018; Carter et al. 2015). Dos cânceres de mama detectados por rastreamento, a estimativa de sobrediagnóstico obtida pelos estudos randomizados é 19% (Keating e Pace 2018), enquanto uma análise de programas de rastreamento reportou 52% (Jørgensen e Gøtzsche 2009). Então, alguns podem se beneficiar do rastreamento do câncer de próstata e mama, porém mais pacientes lidam com danos de um tratamento agressivo que eles nem sequer precisavam.
Figura
1 – Heterogeneidade do câncer. Nem todos os casos tem a mesma taxa de
progressão. (Carter e Barrat 2017 – adaptado de Welch e Black 2010).
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Enquanto que as
mensagens encorajando o rastreamento raramente mencionam sobrediagnóstico, elas
frequentemente trazem afirmações como “se o câncer for diagnosticado
precocemente, a chance de cura é 95%, mas cai para 20% se for diagnosticado em
estágios avançados”. Entretanto, quando há sobrediagnóstico, a proporção de
pacientes curados fica enviesada, uma vez que o número de pacientes que
sobreviveram vai aumentar “automaticamente”, porque esses pacientes com esses
casos não fatais são classificados como "curados", mesmo quando o
rastreamento não oferece nenhum benefício. Ironicamente, o aumento da
incidência e taxas infladas de cura devido ao sobrediagnóstico podem aumentar
os esforços para fazer rastreamento, levando a mais sobrediagnóstico 3 (Brodersen
et al. 2018).
Outra maneira que a
estatística de sobrevivência (ou sobrevida) fica enviesada está relacionada com quanto tempo o
paciente vive após o diagnóstico. O rastreamento só é eficaz se conseguir
detectar doença precocemente. Considere, por exemplo, que sem rastreamento, pacientes
são diagnosticados pelos sintomas aos 70 anos e morrem aos 75 anos. Agora, considere
que esses pacientes seriam diagnosticados por rastreamento aos 65 anos e morreriam
pelo câncer dez anos depois. Com essas descrições, o rastreamento parece ser
benéfico, já que quem faz rastreamento tem sobrevida de 10 anos, enquanto que
sobrevive 5 anos após o diagnóstico. Em ambos os casos, os pacientes morreram
com a mesma idade; o rastreamento apenas antecipou o diagnóstico, sem prolongar
a vida. Isso é chamado de viés do tempo ganho (lead time bias) (Raffle e Gray 2007).
Devido a vieses, a
estatística de sobrevivência (ou sobrevida) não mostra a eficácia do
rastreamento. Se rastreamento é eficaz, a incidência de casos avançados tem de
cair. Após a introdução de rastreamento dos cânceres de próstata e mama, é
esperado um aumento da incidência de casos iniciais dessas doenças. Isso deve
ser seguido, à medida que a população envelhece, por um declínio compensatório
em casos avançados, enquanto a incidência geral permanece igual (Esserman et
al. 2009). Note na Figura 2 que a incidência de casos iniciais de câncer de
mama aumentou significativamente, enquanto que a incidência de casos regionais
caiu bem pouco e a taxa de metástases para outras partes do corpo permaneceu
estável. Curiosamente, apesar da mortalidade do câncer de mama estar caindo, o
declínio foi maior em mulheres jovens não convidadas para o rastreamento (Gøtzsche
et al. 2012; Narod et al. 2015). Além disso, a mortalidade do câncer de mama
caiu de forma parecida em todos os lugares do mundo, mas o inicio do
rastreamento difere entre os países (Gøtzsche 2015a). Observações semelhantes
podem ser feitas sobre o câncer de próstata. Após o rastreamento, não houve um
declínio significativo da mortalidade como esperado, e diferentes taxas do uso
de rastreamento e tratamento não relacionam com a mortalidade do câncer de
próstata (Esserman et al. 2009). Essas análises temporais, embora não demonstrem
causalidade, indicam que o rastreamento leva a considerável sobrediagnóstico de
casos iniciais e seu impacto na mortalidade no melhor caso é pequeno.
Figura 2 – Taxas de incidência dos
diferentes estágios do câncer de mama em mulheres americanas e brancas
padronizadas pela idade. SEER 9, 1975–2011 (Narod et al. 2015).
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A melhor maneira para
avaliar a eficácia do rastreamento é usando ensaios clínicos randomizados, como
PLCO e ERSPC. Estudos clínicos comparam o grupo rastreado com um grupo
controle, procurando por uma redução das mortes causadas pelo câncer sendo
rastreado — o que é chamado de mortalidade específica do câncer. É, por
exemplo, a redução na mortalidade do câncer de mama que leva a afirmação que o
rastreamento com mamografia “salva vidas”. Porém, como as mulheres sobrediagnosticadas
com câncer de mama podem receber radioterapia, que aumenta mortalidade devido a
câncer de pulmão (Gøtzsche 2015b), o rastreamento pode causar mais mortes do
que mortes evitadas devido ao câncer de mama. Uma vez que as mortes de
tratamento são usualmente classificadas como outras causas, a mortalidade
especifica do câncer é enviesada a favor do rastreamento. Esse viés é evitado
usando a mortalidade geral. O que pode ser assustador é que os estudos clínicos
de rastreamento não mostram redução na mortalidade geral. Como Vinay Prasad e
coautores escreveram no BMJ, “nunca foi demonstrado que o rastreamento do
câncer salva vidas” 4. O rastreamento aumenta as mortes por outras causas? Não
sabemos ainda – pode ser apenas “chance”, uma vez que milhões de pessoas seriam
necessárias em um estudo clínico para detectar diferença na mortalidade geral. Prasad
e coautores acreditam que esses grandes ensaios clínicos são necessários para
conhecermos os efeitos do rastreamento. Em contraste, o pesquisador Peter Gøtzsche
acredita que fazer tais estudos não é ético, já que muitas pessoas teriam de
ser rastreadas sem sabermos se isso prolongaria as suas vidas, enquanto que os
faria mais infelizes devido a estresse psicológico causados por falso-positivos
e sobrediagnósticos. Devido a pequeno, se algum, beneficio na mortalidade, mas
danos documentados, Gøtzche afirmou que o rastreamento com mamografia teria
sido retirado do mercado, se fosse um medicamento (Gøtzsche 2015b).
Enquanto isso, o publico precisa ser informado adequadamente. As campanhas de conscientização precisam ser usadas para informar a população as complexidades do rastreamento. Isso é bem importante. De acordo com pesquisas de opinião, mulheres superestimam os benefícios da mamografia por um fator entre 10 e 200 (Wegwarth e Gigerenzer 2018). Além disso, como o rastreamento é frequentemente promovido como prevenção, 68% das mulheres em uma pesquisa de opinião acreditaram erradamente que mamografia reduz as chances de desenvolver câncer de mama. (Domenighetti et al 2003 Como um artigo de perspectiva no New England Journal of Medicine colocou, “Como as mulheres podem fazer uma decisão informada se elas superestimam o beneficio da mamografia tão grosseiramente?” Isso pode ser explicado pela falha dos médicos em comunicar os riscos do rastreamento: em uma pesquisa de opinião com 300 pacientes de rastreamento nos Estados Unidos, 90% deles não receberam informação do seu médico sobre os possíveis danos do rastreamento (Wegwarth e Gigerenzer 2018).
Essa não é a história completa. Uma revisão sistemática mostrou que médicos usualmente superestimam os benefícios do rastreamento e tratamento enquanto que subestimam seus danos. Uma pesquisa de opinião com médicos dos Estados Unidos sugeriu que médicos não compreendem as estatísticas do rastreamento: 76% dos médicos participantes foram enganados pela métrica de sobrevida discutida anteriormente (Wegwarth et al. 2012). Eles equivocadamente pensaram que pacientes diagnosticados por rastreamento com melhores taxas de sobrevida (5 após o diagnóstico) do que pacientes diagnosticados por sintomas significa que o rastreamento salvou vidas. Em um artigo, Wegwarth e Gigerenzer (2018) perguntaram “Por que o conhecimento do risco é tão escasso na saúde?” Os autores discutiram como a dificuldade de entender os riscos e benefícios na saúde provavelmente se deve como a informação estatística é apresentada, em artigos enviesados em períodos médicos e até o uso do risco relativo e estatística enganadora pela mídia. E pesquisas mostram como ferramentas elaboradas para auxiliar a decisão ajudam os pacientes a ficarem mais informados em relação ao rastreamento (Stacey et al. 2014). Os pesquisadores concluíram perfeitamente: “Uma crítica massa de cidadãos informados não irá resolver todos os problemas na saúde, mas pode constituir um grande gatilho para uma melhor saúde” (Wegwarth e Gigerenzer 2018).
*Observações:
Adicionada faixa etária de 50-74 anos para da recomendação da USPSTF para rastreamento mamográfico (ausente no artigo impresso na revista).
As recomendações do Instituto Nacional do Câncer (INCA) são:
- O INCA não recomenda o rastreamento para o câncer de próstata em nenhuma faixa etária (Veja no link);
- O INCA recomenda rastreamento para o câncer de mama com mamografia para mulheres entre 50 e 69 anos a cada dois anos (Veja mais no link) .
Notas:
1. PLCO: Prostate,
Lung, Colorectal, and Ovarian Cancer Screening Trial
2. ERSPC: European
Randomized Study of Screening for Prostate Cancer
3. Isso foi chamado do paradoxo da
popularidade: “Quanto maior o dano pelo sobrediagnóstico e sobretratamento
gerado pelo rastreamento, mais pessoas acreditarão que devem a saúde, ou ate
suas vidas, ao programa”. (Raffle e Grey 2007, 68).
4. Um estudo clínico de 2011 de rastreamento
com tomografia em fumantes reportou redução da mortalidade geral. Embora isso
seja um caso de rastreamento em um grupo de alto risco, Prasad e coautores
consideraram a melhor evidência para redução da mortalidade geral em um estudo
de rastreamento do câncer. Entretanto, como discutido pelos autores, uma
meta-análise de 2013 para USPSTF não demonstrou redução da mortalidade geral (Prasad et al. 2016).
Livros interessantes:
· Overdiagnosed:
Making People Sick in the Pursuit of Health de H. Gilbert Welch, Lisa Schwartz e Steve Woloshin
(2012);
·
Mammography Screening: Truth, Lies
and Controversy de
Peter C. Gøtzsche (2012).
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