quarta-feira, 7 de março de 2018

Os Cães Ficaram Mais Espertos Através da Domesticação? Entrevista com Dr. Brian Hare










por Felipe Nogueira

Dr. Brian Hare é um Professor Associado do Departamento de Antropologia Evolutiva na Universidade de Duke e no Centro de Neurociência Cognitiva. Hare é pioneiro e especialista na área de psicologia dos cães. Junto com Vanessa Woods, Brian Hare escreveu sobre a revolução no estudo da cognição canina no fascinante livro Seu Cachorro É Um Gênio! Como os Cães São Mais Inteligentes do Que Se Pensa. Na palavra dos autores, o livro é “como a ciência cognitiva passou a entender a genialidade dos cães através de jogos experimentais, sem usar outra tecnologia além de brinquedos, vasilhames, bolas, e tudo o mais que houvesse em uma garagem”.
   
Hare e outros pesquisadores mostraram diversas vezes que os cachorros são bons em entender as intenções de comunicação dos humanos. Com a ajuda de um brilhante experimento com raposas iniciado por Dmitri Belyaev em 1950 que continua até os dias de hoje, a pesquisa de Hare descobriu o que permitiu aos cães desenvolverem essa habilidade impressionante: domesticação. Depois de 45 gerações, as raposas de Belyaev no grupo experimental tinham orelhas caídas, rabos enrolados e eram muito melhores na leitura dos gestos humanos do que as raposas no grupo controle. A questão é que Belyaev não selecionou pelas melhores raposas em ler os gestos humanos; em vez disso, ele selecionou as raposas menos medrosas e mais amigas em relação aos humanos. Como Hare e Woods escreveram no livro: “A domesticação, ao selecionar para procriação as raposas mais amigáveis, provocara uma evolução cognitiva”. 

Para entender ainda mais as limitações e flexibilidades da cognição canina, pesquisadores têm criado laboratórios dedicados, como o Centro de Cognição Canina de Duke, criado por Hare.

Dr. Brian Hare
Nogueira: No seu livro, você fala da genialidade dos cães. O que você quer dizer com ser um gênio?
Hare: Se fossemos falar de QI alto, ou quem seria recrutado pela NASA, teríamos um livro bem pequeno. Na minha opinião, a grande descoberta na revolução da cognição é que a cognição não é um traço dimensional único. Na realidade, é todo um conjunto de habilidades que podem variar de forma independente e nem sabemos quantas existem. Por exemplo, uma pessoa pode ser ótima em matemática, mas uma péssima comunicadora. Em relação às espécies, cada uma evoluiu para resolver um conjunto de problemas que as ajudaram a sobreviver e reproduzir em seus ambientes particulares; os cães não são diferentes. O meu livro Seu Cachorro É Um Gênio tenta explicar como uma espécie que parece ser bem comum é tão bem sucedida. Os cachorros são bem sucedidos de uma perspectiva evolutiva porque, em todos os lugares que há pessoas, há cães. É o mamífero mais bem sucedido – depois dos humanos e talvez vacas. É isso que o livro explora: os cães possuem algum tipo de genialidade psicológica ou cognitiva? Sim, eles mostram um nível incomum de sofisticação para resolução de problemas.

Nogueira: Conte como começou a pesquisar a cognição dos cachorros.
Hare: O psicologista do desenvolvimento Michael Tomasello, meu orientador de pesquisa na época, estava me explicando como a comunicação gestual é muito importante no desenvolvimento humano. Ele pensava não ser apenas crucial para evolução humana, mas algo único dos humanos. A teoria dele era que as crianças desenvolveram a habilidade de usar os gestos humanos e entender intenções de comunicação. Então, eu disse para ele que meu cachorro também conseguia fazer isso. Foi quando eu aprendi o que é a ciência, porque mesmo sendo uma ideia importante de como os humanos evoluíram, Tomasello ficou curioso. Ele me disse: “vou te ajudar a achar uma forma de provar que estou errado”. Isso é incrível! Quando descobrimos que ele estava errado sobre os cachorros, ele ficou empolgado, nos dizendo para fazer mais experimentos. As pessoas acham que a ciência envolve pessoas em jalecos de laboratórios criando ideias geniais, mas na realidade é uma maneira de refutar ideias.

Nogueira: Como foi o primeiro experimento com cães?
Hare: Usamos uma técnica poderosa, mas muito simples: tínhamos dois recipientes e escondemos comida em um deles. Então apontamos para onde escondemos, tentando ajudar o cachorro1. Grandes primatas são péssimos nessa tarefa. Eles não mostram muita flexibilidade cognitiva, já que eles precisam aprender o gesto. E, todas as vezes que você usa um novo gesto, eles precisam aprender de novo. Em comparação, crianças por volta de um ano de idade entendem gestos que eles nunca viram antes, mostrando um grau de flexibilidade não observado nos grandes primatas. Fizemos com os cães a mesma série de experimentos que foi realizada com primatas e crianças. A grande surpresa foi que cães são mais parecidos com as crianças.
Esse foi um experimento controlado: os cachorros não estavam usando olfato, nem reagindo ao movimento. Na ciência, há dois passos. Primeiro, é preciso demonstrar um fenômeno. Seja ondas gravitacionais ou cachorros seguindo gestos, você precisa demonstrar o fenômeno. Então, tenta-se explicar. Frequentemente, as pessoas estão preocupadas em explicar antes mesmo de demonstrar que o fenômeno existe. Após demonstrarmos que os cães estavam seguindo o gesto de apontar, nós queríamos saber se eles apenas sentiram o cheiro da comida escondida. Descobrimos que lobos, raposas e cães preferem usar seus olhos. Quando eles não conseguem a informação que precisam pela visão, aí que eles usam olfato. Nesses experimentos, descobrimos que os cães priorizam as informações da visão e memória em comparação com o olfato. 

Nogueira: Um dos experimentos fascinantes mencionado no livro usa uma barreira opaca. Poderia elaborar?
Hare: Esse é o trabalho da Juliane Kaminsky, Michael Tomasello e Josep Call2. Eles colocaram uma bola atrás de cada uma de duas barreiras, uma opaca e uma transparente. O cachorro pode ver as duas bolas. Na condição experimental, um humano está no lado oposto das barreiras e pede para o cachorro buscar a bola. O surpreendente é que os cachorros não pegaram a bola da barreira opaca, que o humano não consegue ver através; eles favoreceram a bola da barreira transparente. Na condição de controle, onde humano e o cão estão no mesmo lado, vendo a mesma coisa, os cães escolhem a bola de forma aleatória. Esse experimento sugere que os cachorros sabem o que os humanos conseguem e não conseguem ver.
Nogueira: Quais são as possíveis explicações para os cães serem tão bom em ler os gestos humanos?
Hare: Um nível de explicação é que os cachorros aprenderam lentamente, já que eles viram esses gestos muitas vezes. Essa ideia pode ser testada usando um gesto que os cães nunca viram antes, como apontar com o pé. Pode se usar um gesto doido, como colocar um objeto em cima de um recipiente onde está a comida escondida. Crianças humanas e cachorros seguem esses gestos, mas chimpanzés não. Com isso, essa hipótese de aprender devagar foi descartada. A parte difícil é como saber se os cães realmente possuem uma estratégia flexível sofisticada, uma teoria da mente, o que significa que eles estão pensando no pensamento de outros indivíduos? A melhor evidência sobre animais que possuem teoria da mente vem dos grandes primatas e talvez pássaros, como corvos. Em relação aos cachorros, na realidade, não temos o experimento conclusivo para eliminar explicações alternativas. Então, não temos evidências extraordinárias que os cachorros possuem teoria da mente. Por exemplo, o experimento da barreira opaca, onde o cachorro sabe o que pessoa consegue e não consegue ver, não foi replicado. Quando estamos estudando algo como a teoria da mente, buscamos múltiplos experimentos onde o animal mostra o mesmo tipo de habilidade. Temos isso com grandes primatas, mas não temos isso ainda com os cachorros.

Nogueira: De onde vêm as habilidades impressionantes dos cachorros?
Hare: Testamos várias hipóteses. A primeira era que como os cachorros são parentes dos lobos, que são inteligentes e talvez fossem bons em ler os gestos humanos. A outra foi experiência: eles interagiram conosco e aprenderam devagar. Finalmente, consideramos se foi algo ocorrido durante a domesticação. E a evidência favorece a domesticação: a seleção dos mais amigáveis com humanos foi o que permitiu aos cachorros serem mais habilidosos na leitura e na utilização dos humanos para resolver problemas. Isso foi uma surpresa: por que ser selecionado por ser amigável torna alguém mais inteligente?   

Nogueira: Como que a pesquisa de Belyaev com as raposas ajudaram a responder essa pergunta?
Hare: Esse brilhante experimento foi conduzido por um grupo de cientistas na Sibéria liderado por Dmitri Belyaev. Eles tinham dois grupos de raposas separados: o grupo experimental e o grupo controle. O grupo controle foi procriado de forma aleatória. No grupo experimental, Belyaev selecionou pelas raposas mais receptivas ou aquelas mais gostavam da interação com as pessoas. Em outras palavras, Belyav selecionou pelas raposas mais amigáveis e deixou que procriassem. Depois de muitas gerações, o grupo experimental de raposas mostrou uma alta frequência de características que Belyaev não selecionou, como orelhas caídas, caudas enroladas e pelagem multicolorida. As raposas também tinham mudanças psicológicas relacionadas à redução da agressão e aumento da atitude amigável. O experimento foi importante para nossa pesquisa porque eles tinham uma população que havia sido domesticada experimentalmente. Era uma grande oportunidade para testar a ideia de que a domesticação realmente é a seleção contra a agressão e pelos mais amigáveis com as pessoas. Faz sentido: como você pode ter um animal domesticado, se ele apenas quer te atacar ou é tão medroso que não consegue chegar perto de você? As raposas também nos levaram às perguntas sobre a psicologia: Essa habilidade impressionante de ler os gestos humanos e de usar os humanos como ferramentas sociais é também um produto da seleção pelos mais amigáveis? A resposta é “sim”: as raposas domesticadas agiram como cachorros na questão da habilidade de ler os gestos humanos, enquanto as raposas do grupo controle se comportaram mais como lobos.   

Nogueira: No seu livro, você menciona que “sem experimento, estaríamos escorregando da ciência para o campo da ficção”. Poderia elaborar por que precisamos de experimentos?
Hare: Publicamos um artigo na Science eliminando as duas primeiras hipóteses4. A primeira era que as habilidades impressionantes dos cachorros de interpretar os gestos humanos evoluíram nos lobos e foram herdadas. Segunda: muita experiência deu essas habilidades aos cachorros. Não encontramos evidências para essas hipóteses. Então, favorecemos a hipótese da domesticação. Não tínhamos evidência para ela, só tínhamos evidência contra as duas outras hipóteses. Se Belyaev não tivesse feito seu experimento de domesticação, estaríamos empacados nesse ponto. O trabalho de Belyaev estabeleceu a possibilidade de testar se a domesticação tornou os cachorros capazes de ler os gestos humanos. Fizemos um experimento com as raposas e ficamos surpresos: mesmo elas não sendo selecionadas para serem mais inteligentes ou melhores no uso dos gestos humanos, elas eram como um resultado de serem selecionadas por serem amigáveis. Tínhamos evidência direta que foi a domesticação5. As pessoas pensam que domesticamos os cachorros e tornamo-los mais inteligentes, mas não significa que é verdade.  

Nogueira: Se isso não é verdade, o que provavelmente aconteceu?
Hare: As pessoas pensam que criamos os cães como a nossa imagem. A melhor evidência sugere que os animais tinham uma vantagem se eles fossem amigáveis com pessoas; eles iriam reproduzir mais. Eu estava comendo em uma área externa de um restaurante e tinha pardais roubando comida a poucos centímetros de mim. Esses pardais estão comendo bastante, estão bem alimentados e saudáveis. Isso porque eles não têm medo das pessoas. Eu acho que algo similar a isso ocorreu com os cachorros. Em algum ponto da evolução humana, os humanos criaram uma nova fonte de comida. Se um animal fosse amigo o suficiente e não tivesse medo da população humana, ele seria um grande vencedor evolutivo. Então, uma população de lobos nos escolheu, não fomos nós que os escolhemos. Uma vez que os caçadores-coletores competiam com lobos, não fazia sentido trazer um animal como um lobo perto das suas crianças. Os lobos perceberam, assim como os pássaros do restaurante, que os restos ao redor dos acampamentos humanos são um recurso ótimo. Depois de algumas poucas gerações, eles mostrariam mudanças morfológicas, como aquelas que vimos nas raposas, possibilitando as pessoas diferenciar entre esses lobos e aqueles lobos que competíamos. Essa teria sido uma grande vantagem seletiva.

Nogueira: Como a evolução está relacionada com essas mudanças?
Hare: A seleção contra a agressão e por ser amigável com as pessoas criou várias mudanças além daquelas na morfologia e psicologia. Uma vez que existiam essas diferenças, a seleção pode agir nelas também. A questão é que essas novas mudanças não foram criadas; os humanos não pensaram em criar cães com orelhas caídas, por exemplo. Alguns indivíduos tinham orelhas caídas devido à seleção contra a agressividade. Com isso, as pessoas poderiam procriar esses indivíduos para criar mais orelhas caídas. Em outras palavras, tiramos vantagem da variância criada pela seleção contra a agressividade.
A evolução não é nada diferente da gravidade. Se eu soltar uma bola, não posso impedir a sua queda, é imparável. A evolução também é imparável. O fato de não conseguimos ver a evolução não significa que não esteja ocorrendo o tempo todo. Outro exemplo é um cervo que vem comer no quintal da minha casa. Normalmente, cervos próximos aos humanos não é uma boa ideia. Se alguém vive a alguns quilômetros da minha casa, um cervo no seu quintal rapidamente vai virar jantar. Mas, onde eu moro no subúrbio, todo mundo pensa que os cervos são fofos e adoráveis. Onde eu moro, há uma maior proporção de cervos com diferentes cores de pelos, há mais cervos brancos e albinos. As pesquisas mostram que os cervos que estão invadindo áreas urbanas são maiores, mais sociais e possuem mais descendentes do que aqueles vivendo distantes dos humanos. 

Nogueira: Esse processo de domesticação que ocorreu com os cães provavelmente ocorreu com outros animais, o que chamamos de convergência da evolução. O que encontramos, por exemplo, quando comparamos chimpanzés e bonobos em relação à agressividade e atitude com os estranhos?
Hare: Os bonobos serviram como um caso de teste para a hipótese de que foi a seleção natural, e não a seleção artificial, que causou a domesticação. Chamamos de autodomesticaçao: as espécies através da seleção natural interagindo com o ambiente terminaram como animais domesticados. Muitas mudanças entre lobos e cachorros são encontradas entre chimpanzés e bonobos. Os chimpanzés são como os lobos da família dos primatas. Se estivermos falando de características morfológicas e comportamentais, os bonobos são como os cães dos primatas. 
Nogueira: Nesta revista Skeptic, defendemos o pensamento baseado em evidência. Como você comunicou com o público, qual você acha que é a melhor abordagem para trazer as pessoas do pensamento baseado na fé para o pensamento baseado em evidências, para, por exemplo, aumentar a aceitação da evolução?
Hare: Nos Estados Unidos, as pessoas pensam que os Cristãos têm um problema com a evolução, mas a Igreja Católica diz que a evolução é consistente com a doutrina Católica. As pessoas adoram a formar grupos contrários: a ciência é algo que outras pessoas fazem. A resposta típica dessa briga entre grupos é que se alguém é religioso e de fé, essa pessoa não pode acreditar na ciência porque a ciência é anti-religião. As pessoas usam estratégias para atacar a ciência, ou pensamento evolutivo, como se fossem o grupo externo. Como alguém que estuda evolução, a primeira coisa a ser notada é que humanos evoluíram para enxergar grupos distintos em todos os lugares. Se dissermos algo do tipo “você é religioso e você não é como eu sou”, acabou a conversa. Como um comunicador da ciência, eu vou dizer que a Igreja Católica não tem problema com a minha pesquisa com o objetivo de desligar essa resposta da diferenciação de grupos. O objetivo do meu livro Seu Cachorro É Um Gênio é empolgar pessoas que nunca leram sobre evolução e ciência cognitiva para lerem, porque elas se importam com cachorros. Darwin iniciou A Origem das Espécies intencionalmente com um capítulo sobre domesticação, porque ele sabia que as pessoas eram familiarizadas e não se sentiam ameaçadas por esse tema. Acho que temos de fazer o mesmo.
        
Nogueira: Obrigado por essa ótima entrevista e continue com sua pesquisa fascinante! 


Referências
1.    Hare B, Tomasello M. 2005. Human-like social skills in dogs? Trends in Cognitive Sciences 9: 439–444. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16061417.  
2.    Kaminski J, Bräuer J, Call J, Tomasello M. 2009. Domestic dogs are sensitive to a human’s perspective. Behaviour 146: 979-998 https://doglab.shh.mpg.de/ pdf/Kaminski_et_al_2009a_dogs_sensitive_humans _perspective.pdf.
3.    Hare, B Hare, B., Homo sapiens Evolved via Selection for Prosociality. Annu Rev Psychol. 68:155-186: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27732802
4.    Hare B., M. Brown, C. Williamson, and M. Tomasello. 2002. “The domestication of social cognition in dogs.” Science. 298: 1634-6.
5.    Hare B., et al. 2005. “Social cognitive evolution in captive foxes is a correlated by-product of experimental domestication.” Current Biology. 15: 226-30.